Quando a ciência avança e a saúde recua: contradição que custa vidas
Por Bernardo Paiva
Por muito tempo, a medicina seguiu uma lógica reativa: esperar o sintoma aparecer para, então, tentar controlá-lo. Esse modelo nos trouxe avanços, mas já não responde aos desafios atuais. Hoje, vivemos uma transição para uma medicina preventiva, personalizada e regenerativa, que não se limita a prolongar a vida, mas busca antecipar riscos, restaurar tecidos e oferecer qualidade de vida duradoura.
A ciência já nos permite regenerar estruturas que antes acreditávamos impossíveis, como cartilagem e tecidos lesionados. Estudos recentes apontam que não falamos mais de promessas vagas, mas de um campo ativo e diverso. A revisão científica “Emerging Strategies in Cartilage Repair and Joint Preservation” (2024), por exemplo, mostra avanços consistentes em terapias baseadas em células, scaffolds biomateriais, intervenções genéticas e até estratégias de modulação microambiental: todos caminhos concretos para restaurar cartilagem articular, que antes era vista como um tecido “irrecuperável”.
Ainda assim, a maior parte dos pacientes segue recebendo tratamentos paliativos: infiltrações, medicamentos de alívio temporário e intervenções repetidas que não tratam a causa, apenas mascaram o problema.
A pergunta é inevitável: se já sabemos regenerar, por que ainda estamos remediando?
Inovação científica versus barreiras de acesso
Parte da resposta está no descompasso entre ciência e sistemas de saúde. De um lado, o Brasil mostra sinais de avanço: em 2025, o Ministério da Saúde anunciou R$561 milhões para investimentos em pesquisas científicas, valor importante para estimular a inovação no país. De outro, o setor suplementar cresce em tamanho, mas nem sempre em qualidade.
Segundo levantamento da ANS (dezembro/2024), os planos de saúde atingiram 52,2 milhões de usuários em assistência médica, recorde histórico. Número que mostra a força desse mercado, mas que também evidencia a responsabilidade de tornar as inovações acessíveis a quem já paga por esse serviço.
A realidade, no entanto, é que a maioria dos planos ainda reluta em incorporar tecnologias regenerativas, preferindo cobrir soluções mais baratas a curto prazo, mas que se tornam ineficazes e custosas no longo prazo. É uma contradição que precisa ser enfrentada: de que adianta expandir o número de beneficiários se o cuidado oferecido ainda se baseia em protocolos ultrapassados?
O papel de médicos e pacientes nessa mudança
Como cirurgião, vejo diariamente pacientes que poderiam ter sua dor interrompida e sua mobilidade restaurada de maneira mais definitiva, mas acabam presos em ciclos de terapias temporárias até que a doença avance para um estágio irreversível. É como se tivéssemos a chave de uma porta, mas insistimos em manter as pessoas olhando apenas pela fresta.
A transformação da medicina não será completa sem pressão da sociedade. Médicos precisam se atualizar constantemente e defender a adoção de terapias mais eficazes. Pacientes, por sua vez, devem questionar indicações ultrapassadas, exigir respostas e buscar informações sobre o que a ciência já comprova como viável. Quando ambos se posicionam, o sistema é obrigado a mudar.
O futuro da medicina já começou. Ele é regenerativo, antecipatório e centrado no paciente. O que falta não é ciência, mas vontade coletiva para transformar conhecimento em acesso. Quanto tempo mais aceitaremos tratar sintomas quando já podemos, de fato, regenerar e devolver qualidade de vida?
*Bernardo Paiva é cirurgião com doutorado pela Faculdade de Medicina da USP e especialista em medicina regenerativa e inovação no desenvolvimento de produtos.
