Cannabis medicinal precisa do engajamento médico
Pesquisadores da USP de Ribeirão Preto, junto com colegas da UNESP de Araraquara e do Instituto Ramón y Cajal de Investigación Sanitaria, da Espanha, encontraram evidências do potencial da cannabis medicinal no combate às superbactérias, uma das prioridades dos sistemas de saúde do mundo no momento. É mais uma novidade no meio de um turbilhão de efeitos comprovados e evidências em estudo, que fazem da Medicina Endocanabinoide uma das áreas mais promissoras da saúde e esperança para milhões de pacientes em diversas condições.
Alinhada aos fatos, em Brasília, a Anvisa segue aprovando produtos à base da planta, que totalizam agora 19 alternativas para a venda em farmácias e drogarias do país. No mesmo sentido, a Justiça continua produzindo decisões favoráveis aos tratamentos e, em 2021, concedeu mais de 40 mil autorizações de importação, em comparação com um pouco mais de 19 mil, no ano anterior. A indústria farmacêutica também acelerou investimentos de olho em um mercado com potencial de US$ 15 bilhões nos próximos dez anos.
Diante desse cenário, é triste concluir que o desenvolvimento de um ecossistema para a cannabis medicinal no Brasil está andando devagar. Mas, infelizmente, está. E por causa da lentidão de duas pontas fundamentais nesse processo: o Congresso e a comunidade médica, fora de ritmo por diferentes motivos, mas que invariavelmente acabam prejudicando milhões de brasileiros.
Na Câmara, por exemplo, o assunto é tratado como pauta comportamental, abordagem sem sentido racional, com origem na mistura nociva de ignorância, ideologia e má-fé, que vai ao encontro apenas de uma lógica política de custo-benefício eleitoral. Uma parcela relevante da população está convencida de que a cannabis medicinal pode estimular o uso e o tráfico de drogas ilícitas e parlamentares de olho nesses votos defendem essa fantasia no Parlamento, mesmo com todas as evidências contrárias. Mais viável que mudar a opinião deles, é mudar a opinião dos eleitores com mais informação.
Nesse sentido, os médicos são os agentes mais bem posicionados para trazer esclarecimento e luz e às evidências. Eles têm conhecimento técnico, autoridade e a confiança da sociedade para abordar temas complexos e conduzir aqueles que não compreendem o assunto. As pessoas acreditam nos médicos. Mas, infelizmente, os médicos continuam distantes dessa questão.
Embora existam poucas exceções produzindo pesquisas de destaque internacional no Brasil, via de regra as instituições de ensino do país ignoram o Sistema Endocanabinoide – sistema regulatório vital, responsável por modular praticamente todos os nossos processos fisiopatológicos – e a cannabis medicinal. Uma contradição, aliás, que faz a vanguarda jogar ainda mais luz sobre o atraso. Como podem cientistas de primeira linha produzirem trabalhos transformadores no mesmo ambiente em que autoridades com diplomas de saúde pendurados na parede privilegiam ideologias ou corporativismos em detrimento de evidências científicas?
Existe, no entanto, uma massa de profissionais que percebe o potencial, mas necessita de mais respaldo para ir à fundo com a Medicina Endocanabinoide. Precisam de educação, é claro, eles sabem disso, mas querem ver uma regulamentação para basear protocolos e boas práticas que garantam a segurança dos procedimentos, inclusive jurídica. Até hoje, existem médicos com dúvidas se podem sofrer represálias ou processos éticos, por se envolverem nos tratamentos. Isso sem contar o receio pela reputação, considerando a abordagem fanática patrocinada por autoridades e instituições. A cautela da maioria dos profissionais é compreensível. Mas das lideranças, não.
Dirigentes de conselhos e sociedades médicas, e todos os médicos com credibilidade e espaço na imprensa têm que se posicionar. Os centros de ensino precisam atualizar currículos com as evidências científicas mais recentes para preparar os novos profissionais desde a universidade. É essa parcela da comunidade médica que deve se envolver para acelerar a transformação, primeiro esclarecendo a população para pressionar por uma legislação e depois regulamentando e orientando a prática clínica. São eles que podem e que têm a obrigação de fazer isso.
*Patrícia Montagner é fundadora da WeCann Academy.