Tratamentos para o câncer de pulmão oferecidos no SUS estão defasados em 10 anos
Dos hospitais que tratam pacientes com câncer de pulmão pelo SUS no Brasil, a maioria não oferece tratamentos já recomendados pela Comissão Brasileira de Avaliação de Tecnologias (Conitec) e por agências internacionais de referência. Além disso, os protocolos recomendados pelo Ministério da Saúde estão defasados em pelo menos uma década, não incluindo tratamentos mais modernos e efetivos desenvolvidos nos últimos anos. A constatação é de um novo levantamento realizado pelo Instituto Oncoguia que analisou padrões e diferenças no tratamento ofertado pelos hospitais oncológicos do SUS para pacientes em todo o país. O estudo foi apresentado durante o primeiro dia do 14º Fórum Nacional Oncoguia, evento já tradicional na agenda da organização que ocorreu em São Paulo nos dias 8 e 9 de maio.
O estudo se trata de uma nova versão do trabalho “Meu SUS é diferente do seu SUS”, publicado em 2017, que identificou que o tratamento oncológico dos tipos mais incidentes de câncer tratados no sistema público variam significativamente entre os hospitais, além de não cumprirem com o determinado nas Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas (DDTs) estabelecidas pelo Ministério da Saúde (MS).
Para a atualização do levantamento, os primeiros dados divulgados são relativos ao câncer de pulmão, comparando os protocolos de tratamentos sistêmicos (quimioterapia, imunoterapia e terapia-alvo), que são mais facilmente reprodutíveis entre os hospitais oncológicos. O tumor é o 4º mais incidente no país, mas figura em primeiro lugar em número de mortes, de acordo com dados do Instituto Nacional de Câncer (INCA).
“Sete anos se passaram e podemos ver que as desigualdades na oferta do tratamento seguem. No caso do câncer de pulmão, fica ainda pior pois não temos disponível para o paciente do SUS tratamentos que oferecem tempo de vida com qualidade. O meu SUS continua muito diferente do seu SUS”, antecipa Luciana Holtz, presidente e fundadora do Instituto Oncoguia, a respeito dos novos dados divulgados em 2024.
A equipe do Oncoguia entrou em contato com 268 hospitais habilitados em oncologia no Brasil para saber quais são os protocolos seguidos para o tratamento de pacientes com câncer de pulmão. Destes, 64 hospitais responderam a pesquisa com documentos satisfatórios para a análise, que comparou os protocolos recebidos com três documentos de referência: as DDTs do Ministério da Saúde atualizada em 2014, a Lista de Medicamentos Essenciais da Organização Mundial da Saúde (OMS) e a escala ScoreCard MCBS da European Society for Medical Oncology (ESMO), que categoriza medicamentos oncológicos pelo seu benefício clínico e efetividade.
O levantamento constatou que apenas 22 hospitais, dentre os respondentes, conseguem oferecer 100% da DDT do Ministério da Saúde. Entre as principais faltas, destaca-se que quase nenhum hospital (98%) conta com tratamentos mais modernos e eficazes, como imunoterapia, considerada central no tratamento atual da doença.
Com relação à terapia-alvo, 49% dos hospitais respondentes não oferecem os medicamentos erlotinibe e gefitinibe, recomendados pelo Ministério da Saúde para o tratamento da doença avançada. As drogas são voltadas para pacientes com mutações de ativação do receptor de fator de crescimento epidérmico tirosina quinase (EGFR) e foram incorporadas ao SUS em 2013 e recomendadas pela DDT de 2014.
“Mesmo se tratando de medicamentos já considerados antigos, incorporados ao SUS há mais de 10 anos, vemos que os hospitais ainda não conseguem ofertar essas drogas, e isso se deve, em grande parte, a dificuldades de financiamento”, diz Helena Esteves, coordenadora de Advocacy do Oncoguia e uma das responsáveis pelo estudo.
Com relação à quimioterapia, 38% dos hospitais respondentes não oferecem tratamentos dos níveis 4 e 5 (mais efetivos para os pacientes) da lista da ESMO. Ao analisar a disponibilidade de imuno e terapia-alvo, apenas 4% dos hospitais respondentes contam com medicamentos recomendados pela sociedade europeia para o tratamento de câncer de pulmão avançado.
Além disso, o levantamento também ressalta que nenhum hospital respondente apresenta o medicamento crizotinibe dentre as opções terapêuticas no seu protocolo. A medicação é voltada para pacientes com câncer de pulmão avançado com mutação no gene ALK e foi incorporada pelo MS em 2022, mas ainda não está de fato disponível no sistema de saúde, como mostra o levantamento.
Outro ponto de destaque é a desigualdade regional com relação à disponibilidade de tratamentos. Por exemplo, nenhum hospital da região Centro-Oeste oferece os tratamentos sistêmicos mais modernos, além de não se enquadrarem nas Diretrizes do Ministério da Saúde.
DDT de câncer de pulmão está defasada em uma década
Além da falta de uniformidade na oferta de medicamentos, o estudo do Oncoguia também identificou uma DDT defasada para o tratamento do câncer de pulmão.
O documento, elaborado em 2014, não inclui os tratamentos desenvolvidos na última década e que, por serem mais direcionados, geram menos internações, menores taxas de recidiva e de complicações, trazendo maior benefício clínico, tempo de vida e qualidade de vida aos pacientes.
“Estamos usando padrões de tratamento antigos e fracos como recomendação padrão para tratar os pacientes do SUS”, comenta o médico oncologista Fernando Moura, membro do comitê científico do Oncoguia e um dos responsáveis pelo estudo.
Além disso, a DDT também não conta com medicamentos já incorporados ao SUS, como o crizotinibe. Segundo o Oncoguia, a falta de acesso a medicamentos já recomendados para o sistema público, como mostra o estudo, acontece porque as incorporações desses medicamentos não foram acompanhadas das adequações necessárias para a oferta da droga, especialmente com relação a atualização da APAC (modelo de reembolso para tratamentos de alta complexidade), que não aconteceram.
“O que temos visto são incorporações de medicamentos pelo Ministério da Saúde, mas que não são seguidas de atualização do valor de reembolso para o tratamento da doença e reorganização das diretrizes do cuidado oncológico, o que na prática inviabiliza que os hospitais de fato disponibilizem aquela nova opção terapêutica no sistema público”, enfatiza Helena Esteves.