Risco, preconceito e atraso: o câncer na população LGBTQIAPN+

Por Sabrina Chagas e Maria Júlia Calas

Maria Júlia e Sabrina Chagas

Quando falamos sobre câncer, acreditamos que a discussão é sobre tumores, genética e inovações no tratamento. Mas a pauta oncológica deve sempre incluir a desigualdade em todas as suas esferas. É falar também sobre corpos que seguem invisíveis e de histórias que não chegam às estatísticas. Nesse contexto, incluímos a população LGBTQIAPN+ que enfrenta não apenas a doença, mas um sistema de saúde que ainda não enxerga suas necessidades.

Nos últimos anos, acompanhamos de perto essas vivências. O Nosso Papo Colorido, livro, é fruto dessa jornada. É um gesto de responsabilidade, mas também um propósito desenvolvido ao longo do tempo. Nossa caminhada começou durante um evento online do Outubro Rosa, em plena pandemia, voltado para a população trans. Fomos convidadas para tirar dúvidas sobre câncer de mama e fomos surpreendidas com histórias impactantes sobre discriminação e com inúmeras dúvidas simples, urgentes e antigas, mas não acolhidas pelo nosso sistema de saúde tradicional.

Escutamos histórias de constrangimento em exames, recusas de atendimento, pessoas que evitavam consultas preventivas não por escolha, mas por trauma. Aquelas vozes denunciaram algo muito maior do que a falta de informação: denunciaram a falta de humanidade. Saímos dali diferentes. E comprometidas.

A comunidade trans vive riscos e desafios oncológicos específicos, mas ainda invisíveis para boa parte das instituições. O câncer de próstata, por exemplo, em mulheres trans não é inexistente. É subdiagnosticado. A supressão androgênica reduz o estímulo hormonal, mas não elimina o risco. A ausência de políticas públicas específicas somada à invisibilidade social resulta em diagnósticos tardios e tratamentos injustos. Da mesma forma, mulheres trans que fazem uso prolongado de estrogênios podem ter risco de desenvolver câncer de mama semelhante ao de mulheres cis, mas a falta de diretrizes adequadas impede que o rastreamento aconteça de forma segura.

Para indivíduos transmasculinos com mamoplastia redutora ou sem cirurgia torácica, com 40 anos ou mais e com risco habitual de câncer de mama, o rastreamento deve ser semelhante ao de mulheres cisgênero.

Mamografias anuais geralmente são indicadas. Ressonância magnética da mama (RMM) e ultrassonografia são consideradas, especialmente se houver outros fatores de risco. Já o indivíduo transmasculino submetido a mastectomia bilateral não necessita de realização de exames para rastreamento.

Existe ainda um fato grave: não temos dados suficientes. O que existe é fragmentado, insuficiente, e muitas vezes inferido a partir de populações cisgênero.

Em tumores hormônio-sensíveis, como mama e próstata, essas considerações se tornam ainda mais essenciais. Suspender ou alterar a terapia hormonal de afirmação de gênero impacta diretamente o bem-estar emocional — e ignorar essa questão é grave!

A Sociedade Americana de Oncologia Clínica (ASCO) reconhece que a maioria dos oncologistas não se sente preparada para atender essa população. A falta de formação gera insegurança, que por sua vez produz distanciamento — e o distanciamento cria risco.

Fortalecer currículos médicos com conteúdos sobre saúde de minorias sociais é necessário. Além disso, exercitar o que a ASCO chama de humildade cultural: a capacidade contínua de se autorrefletir, ouvir com mente aberta e respeitar profundamente as narrativas e identidades de quem cuidamos.

Tratar o câncer na população LGBTQIAPN+ exige mais do que conhecimento técnico. Exige cuidado. Exige escuta ativa. Exige reconhecer que a identidade de gênero não é detalhe: é dimensão central da saúde. Sabemos que o rastreamento salva vidas. E sabemos que a ausência dele as coloca em risco. A invisibilidade LGBTQIAPN+ na oncologia não é um acaso — é um reflexo de prioridades. E mudar esse cenário exige coragem institucional, políticas públicas consistentes e, acima de tudo, profissionais dispostos a se implicar.

Precisamos formar médicos e equipes para atender com respeito e competência, atualizar diretrizes com base na realidade da população trans, criar serviços que acolham, garantir acesso psicológico, social e clínico integrados e reconhecer que saúde é direito — não privilégio de gênero.

O Nosso Papo Colorido é, ao mesmo tempo, guia, manifesto e convite. Um convite para que o cuidado oncológico se torne um espaço onde cada corpo possa existir com dignidade; onde ciência e empatia caminhem lado a lado; onde o cuidado seja tão plural quanto as pessoas que o procuram. E isso não é pauta de um grupo — é pauta de país.


*Sabrina Chagas é oncologista clínica e presidente do Instituto Nosso Papo Rosa e Maria Júlia Calas é mastologista e presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia – Regional Rio de Janeiro.

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