Câncer: crescem os números, a incidência e as disparidades
Por Carol Sarmento
01 de fevereiro de 2024. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Agência Internacional de Investigação sobre o Câncer (IARC) divulgaram as estimativas recentes para o câncer no mundo. O documento destacou a incidência crescente, o impacto desproporcional direto às populações menos favorecidas e a urgência em tratar globalmente as desigualdades e disparidades. Foi demonstrado também que a maioria dos países não financia adequadamente serviços prioritários de atendimento ao câncer e cuidados paliativos, o que mostra claramente que o assunto é bastante relegado, mal gerido e deixado na berlinda do sofrimento. Como consequência, os pacientes são expostos a uma péssima qualidade de vida.
04 de fevereiro de 2024. Mais um Dia Mundial Contra o Câncer, iniciativa global liderada pela União Internacional Contra o Câncer (UICC), em tentativa desde o ano de 2000 de conscientizar e influenciar positivamente para que todos se unam numa só voz a fim de enfrentar um dos maiores desafios da nossa história. A discussão e a tônica propostas para o ano vigente visam aumentar a consciencialização global, melhorar a educação e impulsionar ações pessoais, coletivas e governamentais que tornem tangível imaginar um mundo onde não ocorram as milhões de mortes evitáveis por câncer e onde o acesso a tratamentos que salvam vidas seja o mesmo para todos, independentemente de onde eles moram e onde sejam atendidos.
05 de fevereiro de 2024. O Palácio de Buckingham anuncia que o Rei Charles foi diagnosticado com câncer. As informações foram pouco específicas e sem detalhes sobre tipo, localização, estadiamento, mas não deixaram de elencar a proatividade da equipe médica assistente em diagnosticar, intervir e tratar – o que pode, indubitavelmente, levar a resultados formidáveis e a expectativas elevadas dos melhores desfechos possíveis no caso do monarca.
Em menos de 24 horas corridas, a história mundial escancara a métrica de desigualdade com que lidamos, pelo menos para mim. Não que eu deseje que o príncipe tenha acesso a serviços de saúde no modelo subsaariano, mas eu sonho com um mundo onde os menos favorecidos tenham oportunidades de atendimento que provejam cuidados de prevenção, intervenções eficientes, diagnóstico precoce, tratamentos de ponta e desfechos possíveis dignos de quem tem sangue real.
Quando olhamos sob a ótica da equidade e da justiça, as barreiras se mostram grandes, diárias, quase intransponíveis. Tão mais se considerarmos fatores como renda, educação, de que lado do Meridiano de Greenwich e da Linha do Equador se vive, a qual etnia, gênero, orientação sexual e faixa etária se pertença, se portador ou não de alguma deficiência: tudo isso importa em como vão ser influenciados os cuidados, o acesso e as oportunidades.
Quer um exemplo prático? Falemos sobre o câncer de mama. O levantamento da OMS mostrou que, em países com um índice de desenvolvimento humano (IDH) muito elevado, 1 em cada 12 mulheres será diagnosticada com câncer de mama durante a vida, e 1 em 71 mulheres morrerá desta doença. Ao analisar países com um IDH baixo, embora apenas 1 em cada 27 mulheres seja diagnosticada com câncer de mama durante a vida, 1 em cada 48 mulheres morrerá por causa disso. Ou seja, as mulheres de países com IDH mais baixo têm 50% menos probabilidade de serem diagnosticadas com câncer de mama do que as mulheres de países de IDH elevado. No entanto, aquelas têm risco muito maior de morrer pela doença, o que demonstra o tanto de diagnóstico tardio e acesso inadequado a tratamentos de qualidade que as pacientes experimentam, sem ter acesso a medidas que tragam impacto em ganho de sobrevida global e qualidade de vida.
Ao se demonstrarem as desigualdades e injustiças frente a números que são tão impactantes, precisamos, enquanto indivíduos, repensar nossas práticas diárias de estilo de vida e consumo, ao mesmo tempo em que devemos olhar questões sociais, políticas e humanitárias. Está certo dizer que precisamos banir da nossa vida o tabagismo, prezar por hábitos alimentares saudáveis, fazer exercício físico regularmente, diminuir o consumo de álcool, combater a obesidade, vacinar para prevenir o câncer nessa e nas próximas gerações (se vacinarmos para HPV, é possível que erradiquemos o câncer de colo de útero proximamente; lembrar também da vacina para hepatite B e a prevenção do câncer hepático), fazer exames preventivos regulares e buscar diagnóstico precoce. Entretanto, há que se buscar políticas, políticos, sistemas e sociedade engajados em combater as desigualdades, em trabalhar para um mundo mais justo e livre da doença, onde vacinas, educação em hábitos saudáveis, boas práticas de saúde, acesso a diagnóstico precoce e tratamento de qualidade façam a diferença, para todos.
Qualquer pessoa pode ter câncer, mas nem todos podem ter o mesmo acesso aos cuidados oncológicos. É tempo de ação.
*Carol Sarmento é médica intensivista e paliativista e criadora do Projeto Cuida.