Bioética e direito médico: fundamentos que todo médico deve dominar
Com a crescente complexidade dos sistemas de saúde, a presença de profissionais do Direito especializados em temas como Bioética, Direito Médico e Compliance tem se tornado cada vez mais essencial. Questões como a judicialização da saúde, os dilemas éticos no cuidado, o conflito de interesses na prescrição médica e os riscos regulatórios exigem respostas técnicas, sensíveis e alinhadas aos princípios que norteiam o cuidado em saúde.
Para aprofundar essas discussões, Camila Cortez, advogada especialista em Bioética, Direito Médico e Compliance, analisa os principais desafios enfrentados por instituições, profissionais da saúde e gestores diante de um cenário em constante transformação. A profissional é fundadora da KCortez Consultoria e conta com passagem pelo CREMESP.
Qual o papel da Bioética nos desafios contemporâneos da saúde brasileira?
Camila Cortez: A Bioética, hoje, é uma ferramenta fundamental para lidarmos com as questões que enfrentamos diariamente na saúde, especialmente na atuação dentro dos hospitais. Desde a entrada do paciente — a forma como nos comunicamos, acolhemos e apresentamos o termo de consentimento — até dilemas extremamente complexos como pacientes que não aceitam nenhum tipo de suporte e desejam que a morte ocorra de forma natural, sem intervenção, por exemplo. Esses são debates presentes no nosso cotidiano, e a bioética surge como uma aliada essencial para resolver esses conflitos da melhor maneira possível, sempre priorizando aquilo que é melhor para o paciente.
Quais temas você considera mais urgentes no debate sobre compliance em saúde?
Camila Cortez: Hoje, no compliance, eu costumo dizer que o tema ao qual precisamos dedicar mais atenção é o conflito de interesse, especialmente envolvendo o profissional de saúde prescritor. É fundamental observar quais relações esse profissional mantém com a indústria, de que forma realiza suas prescrições e se essas decisões são, de fato, voltadas para o melhor interesse do paciente ou influenciadas por algum vínculo externo.
Esse mapeamento precisa estar estruturado dentro da instituição de saúde. É necessário que existam mecanismos de controle claros e eficazes. Na minha atuação com compliance, esse tem sido um dos principais desafios. É evidente que cada instituição possui seu próprio perfil e suas dores específicas, mas o conflito de interesses, especialmente no âmbito da prescrição médica, é um tema que está constantemente no meu radar e que, sem dúvida, merece atenção prioritária.
Quais mudanças você observa no comportamento das instituições diante da judicialização da saúde?
Camila Cortez: A judicialização da medicina trouxe, infelizmente, um reflexo nas instituições e nos profissionais de muito medo. E eu digo que eu não sei o que veio antes: Se foi a judicialização ou se foi esse distanciamento entre relação médico-paciente. Porque essa judicialização contribui para esse distanciamento que gera judicialização.
Então, o nosso trabalho dentro dos hospitais é justamente empoderar os médicos, deixá-los seguros para que façam o melhor para o paciente e sempre, de uma forma também responsável, colocando tudo no prontuário, deixando de uma forma que eles, se questionados, possam justificar. Mas sem que isso seja uma barreira de aproximação entre as partes, porque esse distanciamento é justamente o que leva ao problema que a gente tem na saúde hoje. Fortalecer a relação médico-paciente me parece que é o melhor caminho e o que vai barrar efetivamente a judicialização.
Como eventos que debatem esses temas contribuem para a evolução do setor?
Camila Cortez: Esses eventos trazem à tona alguns temas que estão em voga e que a gente não consegue parar muito no dia a dia para olhar para eles. A gente consome muita informação e a medicina está evoluindo. Eu acredito muito na educação e na prevenção, de estarmos ao máximo preparados para os cenários que a gente tem que encarar na nossa profissão.
Eventos como esse contribuem de forma fundamental para que a gente olhe para esses temas e também que a gente consiga fazer um bom networking, que a gente troque com os profissionais, faça contatos, veja como é que está a experiência dos profissionais e criar uma grande rede de apoio.
Qual mensagem você gostaria de deixar para os profissionais da saúde que atuam na ponta?
Camila Cortez: Vocês não estão sozinhos. É importante que enxerguem o profissional do direito como um aliado. Diante de tantos desafios que temos vivenciado na saúde, é essencial ter alguém de confiança ao lado, que possa ajudar a embasar as decisões do dia a dia.
Estamos vivendo um momento de profissionalização intensa na Medicina — e isso também vale para outras áreas da saúde. Essa transformação exige que profissionais capacitados atuem em conjunto. Não cabe mais a figura do médico ser também advogado, contador, secretário e assumir todas as funções ao mesmo tempo. Da mesma forma, não temos nenhuma pretensão de que os médicos se tornem juristas.
O que faz a diferença hoje é uma equipe multidisciplinar, formada por pessoas com propósitos alinhados, mas com expertises diferentes. Esperamos que, cada vez mais, os profissionais de saúde enxerguem valor nesse tipo de parceria e façam adesão a esse tipo de serviço.
Quais os principais dilemas éticos enfrentados por instituições de saúde no contexto pós-pandemia?
Camila Cortez: Aprendemos a buscar novas formas de lidar com os problemas, como é o caso da bioética. Entendemos como uma gestão fortalecida pode mudar completamente o rumo das decisões dentro de uma organização.
Percebo que, ainda hoje, existe uma sensibilidade e até uma vulnerabilidade muito grande entre os profissionais de saúde. Esse é um ponto que precisamos manter sempre no nosso radar. Não podemos deixar esses profissionais desassistidos.
Outra lição importante diz respeito à comunicação. Muitas vezes, o que resta em momentos difíceis é o acolhimento e uma boa conversa. E a comunicação em saúde ainda é, de forma geral, bastante precária. Precisamos incentivar e valorizar uma comunicação mais clara, empática e efetiva entre equipes, pacientes e instituições.
De que forma a Bioética pode apoiar políticas públicas de saúde mais inclusivas e justas?
Camila Cortez: A bioética, que tem como um de seus princípios fundamentais a justiça, junto com a beneficência, a não maleficência e a autonomia, pode oferecer um olhar valioso e lançar luz sobre questões complexas discutidas nos hospitais.
O que ainda observamos é que poucas equipes possuem aptidão ou profissionais capacitados para lidar com bioética dentro das organizações de saúde. É um ponto que precisa ser fortalecido. Ainda é um movimento muito incipiente, se comparado ao que gostaríamos de ver implantado nas instituições.
O que é debatido pelos comitês de Bioética pode — e, muitas vezes, deve — ser compartilhado com a sociedade, desde que de forma ética e segura, sem a identificação dos envolvidos. Essas discussões podem gerar conhecimento e orientar boas práticas.
Nossa sociedade está envelhecendo, e precisamos começar a olhar com mais seriedade para esse cenário. A desospitalização será um dos grandes desafios dos próximos anos, e políticas públicas bem estruturadas podem fazer parte da solução.
Qual a importância do compliance nas relações entre instituições de saúde e operadoras?
Camila Cortez: O compliance é fundamental na relação entre as instituições de saúde e as operadoras — seja por questões relacionadas a fraudes, prescrição de materiais com valores acima do adequado ou até mesmo por exigências específicas das operadoras, como a entrega completa do prontuário do paciente.
Hoje, o compliance atua de forma integrada nesse relacionamento entre hospital e operadora. É uma relação que requer atenção redobrada com a fonte pagadora. Sabemos que existe um contrato, e que essa fonte pagadora é essencial para a sustentabilidade da instituição. No entanto, há diversas camadas em que o compliance precisa atuar.
Os contratos podem conter cláusulas abusivas, podem ferir normas éticas e até mesmo regulatórias. Muitas vezes, observamos conflitos entre as exigências contratuais e as normas dos Conselhos Regionais de Medicina, por exemplo. O olhar do compliance é essencial para mediar essas divergências e garantir segurança jurídica para as instituições.
Em uma perspectiva mais ampla, o que tem se tornado cada vez mais relevante é o problema da prescrição de materiais indevidos, materiais com valores acima do necessário ou em quantidades excessivas. Esse é um tema sensível, que envolve diretamente a ética e os custos da assistência, e o compliance tem sido cada vez mais acionado para atuar nessas frentes de forma estratégica e preventiva.
Como preparar líderes e gestores para lidar com questões éticas complexas no cotidiano assistencial?
Camila Cortez: Os líderes e gestores estão em um patamar de exigência muito diferente do que víamos há 10 ou 15 anos. Eles precisam estar preparados para esse novo papel — com um olhar mais amplo e, no mínimo, com noções sobre governança. Ainda que não dominem todos os temas, é essencial que contem com equipes multidisciplinares que os auxiliem.
Líderes e gestores precisam enxergar a saúde de forma sistêmica, compreender todos os stakeholders envolvidos e reconhecer quais são os mecanismos de apoio disponíveis, para que se sintam seguros e respaldados por profissionais com as expertises adequadas.
A principal ferramenta de preparação é o treinamento. O incentivo a debates sobre temas que fazem parte do dia a dia é essencial, porque os riscos não são estáticos. Eles evoluem com o tempo. À medida que os cenários se transformam, novos riscos surgem, e precisamos estar atentos a isso.
Se eu tivesse que destacar um único ponto, seria justamente esse: o treinamento contínuo. O gestor precisa estar aberto a aprender sobre diferentes áreas, para que possa orientar sua equipe com mais segurança e, assim, estar preparado para um cenário da saúde muito mais complexo do que aquele que enfrentamos anos atrás.