Autismo no Brasil: a batalha pela qualidade e acessibilidade

Por Kenny Laplante

Nos próximos 10 anos no Brasil, estima-se que 1 milhão de crianças nascerão com autismo, tendo como base dados revelados pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC). Atualmente, enfrentamos um cenário global onde não há profissionais de saúde qualificados suficientes para atender todas as crianças que necessitam de terapias. Muitas famílias vivem em áreas de difícil acesso à intervenção e poucas conseguem arcar com os altos custos dos tratamentos disponíveis, além de as intervenções comumente praticadas serem de uma carga horária muito elevada.

Temos, portanto, uma escolha a fazer: tentar encontrar 20 bilhões de horas de tratamento ou focar na qualidade e acessibilidade.

Em 1987, Ole Ivar Lovaas, pesquisador e psicólogo, iniciou um estudo pioneiro que definiu muitas das práticas utilizadas até hoje no tratamento de autismo. No entanto, o contexto social e diagnóstico daquela época era muito diferente. A sociedade sabia pouco sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA), e o acesso a ambientes inclusivos era ainda mais limitado. O estudo de Lovaas, focado em crianças com níveis altos de suporte, utilizava um modelo de 40 horas semanais de terapia com Ensino por Tentativas Discretas (DTT). Esse modelo foi eficaz, mas com o tempo, aprendemos que a abordagem não deve ser universal, ou seja, uma única abordagem para indivíduos com necessidades amplamente diferentes. Vale destacar que a pesquisa foi feita com base no sistema educacional norte-americano, que é bem diferente do brasileiro.

Desde então, o campo da intervenção no autismo evoluiu significativamente. Diversas estratégias foram desenvolvidas dentro da ciência da Análise do Comportamento Aplicada (ABA) além do modelo inicial do Lovaas , como a Intervenção Naturalista de Desenvolvimento Comportamental (NDBI), incluindo por exemplo JASPER, abordagem terapêutica baseada em uma combinação de princípios de desenvolvimento e comunicação, e o Early Start Denver Model, voltado à intervenção precoce.

Além disso, pesquisas mais recentes demonstram que é possível alcançar resultados eficazes no tratamento do autismo com uma carga horária significativamente menor, utilizando diversas abordagens terapêuticas em variados ambientes. Um estudo conduzido por Lindsey Sneed, PhD, vice-presidente de excelência clínica da Catalight, uma das maiores redes de saúde comportamental dos Estados Unidos, analisou o progresso de crianças autistas que receberam intervenção com uma quantidade relativamente baixa de carga horária – menos de 9 horas por semana, em média, mas com alto engajamento dos cuidadores principais e comparou os resultados com um grupo semelhante de crianças que receberam a mesma intervenção, porém apenas com a participação dos profissionais. Os dados mostram que as crianças do grupo que tinha a participação dos pais obtiveram maiores ganhos em suas competências sociais do que aquelas do grupo liderado por profissionais, mas também revela que as crianças de ambos os grupos analisados fizeram progressos significativos, ainda que com poucas horas semanais de intervenção.

Comprovadamente, a quantidade de horas não pode ser o único fator determinante para a eficácia da intervenção; a qualidade e a adequação da abordagem às necessidades individuais, a rotina e o contexto social da criança são igualmente ou até mais importantes. Estudos recentes, como visto na meta-análise de Pellecchia M. et al. (2019), conclui que a intensidade não prevê necessariamente melhores resultados, destacando que a intervenção precisa ser personalizada.

A Importância da Qualidade versus a Quantidade

Ainda que a quantidade de horas de intervenção seja um tema amplamente discutido, a qualidade do atendimento é ainda mais crucial. Connie Kasari, criadora do Método JASPER, afirma em seu artigo intitulado De quanta terapia comportamental uma criança autista precisa?, de 2019, que o “objetivo deve ser desenvolver terapias eficazes que possam ser aplicadas em um período de tempo razoável e que possam ser personalizadas para crianças autistas com necessidades distintas”. No mesmo texto, ela também defende que “uma abordagem mais eficaz seria iniciar todas as crianças com baixa intensidade, avaliar a resposta de cada criança num ciclo de reavaliação pré-especificado e aumentar ou diminuir a intensidade se isso se mostrar necessário”.

Portanto, a pergunta central é: qual a quantidade de horas necessárias e como isso pode ser estabelecido de forma individualizada? O foco deve estar na qualidade, em escolher a estratégia adequada para cada criança, implementar essa estratégia corretamente e garantir que seja aplicada em uma frequência e ambiente apropriados. A intervenção deve ser adaptável, considerando não apenas as necessidades da criança, mas também o contexto familiar e escolar, criando um ambiente de suporte integral.

Efeitos Colaterais de Alta Intensidade

A imposição de um modelo de 40 horas semanais também apresenta outros desafios, inclusive no cotidiano da estrutura familiar. Uma metanálise que reuniu 770 estudos relacionados à intervenção em crianças com TEA não identificou nenhum estudo que analisasse a qualidade de vida das famílias atípicas (Gitimoghaddam, 2022), o que revela que a necessidade irrestrita das 40 horas ignora, por exemplo, o impacto nas rotinas familiares que, neste caso, precisam, praticamente, dedicar tempo integral para a intervenção da criança. O estudo Retratos do Autismo no Brasil em 2023, da Genial Care, com mais de 2 mil respondentes, expõe que 68% dos cuidadores dizem ter dificuldade para ter tempo para descanso e para cuidar de si mesmos. Recomendar uma quantidade de horas que não condiz com a realidade da família e não leva em consideração as necessidades de todos, irá sobrecarregar os envolvidos na intervenção, desde terapeutas, familiares e até mesmo a criança.

Além disso, programas de alta intensidade podem levar à escassez de profissionais, resultando em longas filas de espera e acesso limitado, que, atualmente, já é um dos grandes problemas, se agravando ainda mais em áreas rurais e sem contar as grandes regiões brasileiras sem uma infraestrutura adequada. Essas filas de espera não são apenas frustrantes para as famílias, mas podem atrasar intervenções essenciais durante períodos críticos de desenvolvimento da criança.

Nos Estados Unidos, onde o modelo de 40 horas é prevalente, muitas clínicas enfrentam uma escassez de profissionais, resultando em longas filas de espera e dificuldades para encontrar e reter terapeutas. Isso também dificulta o investimento em outros mecanismos que impactam na qualidade, como tecnologia e treinamento. Nesse cenário, a qualidade da intervenção e o foco na evolução da criança acabam prejudicados, mesmo nas clínicas com as melhores intenções, pois o foco inevitavelmente se torna a quantidade de serviços prestados ao invés dos resultados alcançados.

Incentivos e Comportamentos

O sistema de Fee for Service (pagamento por hora de intervenção prestada), que hoje é o modelo mais comum praticado entre clínicas e operadoras de planos de saúde, cria incentivos que não são otimizados para resultados. Treinamento de pais, por exemplo, é muitas vezes marginalizado porque não é economicamente viável. Imagine uma clínica que deve escolher entre oferecer 40 horas de terapia direta ou investir em 1 hora de treinamento para pais. A existência desse paradigma, pode direcionar a escolha para a opção mais rentável, não necessariamente a mais benéfica para a criança.

Além disso, o sistema atual frequentemente isola outras disciplinas importantes como Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, que podem oferecer abordagens complementares essenciais para a evolução da criança autista. A integração dessas disciplinas oferece uma visão mais unificada e eficaz da intervenção, mas é muitas vezes negligenciada devido às limitações impostas pelos modelos de reembolso.

Definindo uma Intervenção de Qualidade

No Brasil, temos a oportunidade de definir um novo padrão para o tratamento de crianças com autismo. Devemos focar em:

Qualidade, não quantidade: Promover a autonomia e ajudar as crianças a atingir seu potencial. O tratamento deve sair da mentalidade de “quanto mais, melhor”, e se concentrar em critérios claros e personalizados para prescrever horas ou reduzir horas, de acordo com quantidade ideal para a criança, e, eventualmente, graduar ou transferir para outras terapias.

Modularidade: Adaptar estratégias de acordo com as necessidades individuais das crianças. O autismo é um espectro, diferente para cada pessoa, e uma abordagem única não é suficiente. Devemos usar uma combinação de métodos, ajustando conforme necessário para cada criança.

Ciclos de avaliações curtos: Escolher e ajustar rapidamente a estratégia mais eficaz para cada criança. Isso envolve monitoramento constante e ajustes frequentes, garantindo que a intervenção permaneça relevante e eficaz ao longo do tempo.

Integridade do tratamento: Garantir que a implementação das estratégias seja feita corretamente. Isso inclui treinamento contínuo para terapeutas e supervisão regular para manter altos padrões de qualidade.

Abordagem multidisciplinar: Utilizar diferentes disciplinas para criar um plano de desenvolvimento abrangente. A colaboração entre profissionais de diferentes áreas pode enriquecer o plano de intervenção, oferecendo perspectivas diversas e complementares.

Treinamento e capacitação contínua: Investir em terapeutas e na formação de pais e professores. Essa capacitação garante que a intervenção se estenda além das sessões terapêuticas, integrando-se na vida diária da criança.

Uso de tecnologia: Implementar ferramentas tecnológicas que apoiem terapeutas e famílias, garantindo acesso a informações atualizadas e práticas eficazes. A tecnologia pode facilitar o monitoramento do progresso, oferecer recursos educativos, conectar famílias a comunidades de apoio e garantir que o terapeuta esteja focado no que mais importa: o desenvolvimento dessas pessoas.

Escolha para o futuro

O Brasil está em uma posição única para liderar um modelo de cuidado focado em resultados e qualidade. Podemos evitar os erros cometidos pelos EUA, como a dependência de um modelo de 40 horas semanais, restringindo o acesso e limitando metodologias de desenvolvimento. Em vez disso, devemos nos concentrar em gerar resultados clínicos e melhorar constantemente a integridade do tratamento. Isso incluirá parcerias estratégicas e contratos baseados no resultado da intervenção, permitindo mais inovação e incentivando práticas eficazes.

Nos próximos 10 anos, 1 milhão de crianças com autismo nascerão no Brasil. Temos a escolha de buscar 20 bilhões de horas de tratamento ou focar na qualidade e acessibilidade. Parece uma escolha fácil.

Ao priorizar intervenções de alta qualidade e acessíveis, podemos garantir que essas crianças tenham a oportunidade de atingir seu máximo potencial.


*Kenny Laplante é Fundador e CEO da Genial Care.

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