USP analisa desafios do enfrentamento da Covid-19 em pequenos municípios

Por Fábio Bacchiegga e Maria da Penha Vasconcellos

O ano de 2021 começou de forma trágica com o Brasil atingindo o terrível número de mais de 200 mil mortes pela Covid-19 e mais de oito milhões de infectados, enquanto também acompanhamos o despreparo do Ministério da Saúde em lidar com a crise sanitária, a expansão de fake news sobre a doença e seu tratamento e lentidão e trágica tentativa de politização de uma possível vacina em diferentes esferas públicas. Nesta situação, enquanto muitos discutem se estamos em uma “segunda onda” de infecções ou se ainda seria uma “segunda crista” da “primeira onda” que nunca saímos, percebemos que estratégias de flexibilização do isolamento social tomadas nos últimos meses de 2020 cobram um preço perigoso neste início do ano com números de mortes e infectados aumentando.

Porém, essa expansão não acontece de maneira uniforme e, segundo levantamento realizado pela Folha de S. Paulo, nos pequenos municípios, com até 20 mil habitantes, o aumento médio dos casos da Covid-19 foi de 503% no segundo semestre de 2020, mostrando que estes lugares iniciam o ano com as maiores taxas de contaminação do País. Se considerarmos apenas a situação dos municípios menores ainda, com até cinco mil habitantes, a situação é mais dramática, com aumento de 850%.

Como ocorreu o processo de expansão da Covid-19 nessas cidades e que fatores explicam essa expansão nas pequenas localidades? Quais os impactos desses números na dinâmica da saúde pública desses espaços? Entender estas questões torna-se urgente diante do avanço da pandemia nessas áreas e diante da possibilidade de criarmos estratégias de políticas públicas e alocação de recursos mais eficientes.

Uma das possibilidades de analisarmos a difusão pelo território de doenças transmissíveis, como a Covid-19, é através da hierarquia das cidades onde, a partir da percepção de redes urbanas e pela forma como municípios se conectam, como os deslocamentos viários, e sua esfera de importância através da sua rede de serviços, por exemplo, pode-se efetuar uma análise da quantidade de interações sociais das diferentes áreas dentro da mesma redes, tornando a possibilidade de transmissão mais ampliada nas maiores áreas com interações mais intensas e uma transmissão mais tardia e lenta para áreas menores, com menos interações dentro da rede urbana.

Essa hipótese nos ajuda a entender como a Covid-19 chega ao Brasil, via aeroporto, em São Paulo, nossa única Grande Metrópole Nacional, segundo a Região da Influência das Cidades divulgada pelo IBGE (2020), mantendo a tendência da entrada do vírus na maior parte dos países do mundo, sempre pela cidade no topo da hierarquia urbana nacional. A maior cidade apresenta o maior número de interações, com diversas conexões em diferentes níveis, desde o local ao global, ampliando a possibilidade da chegada do vírus e expansão a partir dela.

Seguindo a percepção da difusão hierárquica do vírus, a partir de São Paulo:

“O processo de difusão da covid-19 no Brasil parece seguir a lógica observada na maioria dos países onde, a partir de grandes centros urbanos, se dissemina para cidades médias e pequenas interioranas. Se por um lado a difusão em escala nacional entre os centros urbanos de nível mais alto parece ter decorrido de ligações aéreas, o espalhamento em escala regional depende das ligações rodoviárias e intraurbanas no caso de grandes conturbações como as metrópoles. A tendência é que nas próximas semanas possa atingir centros urbanos de menor porte no interior em direção ao Sul do país, assim como ao longo do litoral brasileiro” (Fiocruz, 2020: s.n.).

Portanto, diferente do que acompanhamos neste início de 2021, sabe-se que, no primeiro semestre de 2020, os pequenos municípios eram os menos afetados pela doença, porém como nos mostra a figura abaixo, utilizando o Estado de São Paulo como referência, a expansão da Covid-19 se fez seguindo a hierarquia urbana a partir da maior cidade e ao longo dos eixos de desenvolvimento e orientado pelos fluxos rodoviários.

Radar COVID-19 UNESP

A figura acima, retratando um momento ainda na parte inicial da pandemia no Brasil (25 de maio de 2020), nos apresenta a expansão da doença a partir de São Paulo, seguindo para as cidades grandes e médias a partir da rota do deslocamento das rodovias, mas concentrada nas áreas onde a intensidade do fluxo é mais acentuada, como no eixo das rodovias Anhanguera-Bandeirantes, Dutra e Imigrantes, e com menor intensidade de transmissão justamente pela Rodovia Castelo Branco, que se estende pela área ainda com relativa preservação ambiental, mas de menor desenvolvimento econômico do Estado (região do Vale do Ribeira).

Este fato adiciona uma análise importante na transmissão de epidemias de forma hierárquica, pois os deslocamentos não são homogêneos, mas sim a transmissão da Covid-19 entre cidades se faz inicialmente nas áreas mais próximas do centro de dispersão (São Paulo), conforme esperávamos, mas a partir disso se desloca pelas rodovias que representam maior participação no eixo econômico do Estado, como a Anhanguera-Bandeirantes onde encontramos grandes cidades como Campinas e Ribeirão Preto. Ignorar o eixo econômico como vetor de deslocamentos de mercadorias, pessoas e, em uma situação de pandemia, do vírus, é abandonar um elemento de grande importância na análise da dispersão.

E seguindo a dinâmica da hierarquia da rede urbana, os pequenos municípios foram os últimos a serem afetados pela Covid-19, justamente por situarem-se no “fim da rede”. A cidade de Santa Mercedes foi a última cidade do Estado de São Paulo, o mais afetado pela pandemia de Covid-19, a apresentar seu primeiro caso. Distante quase 700 quilômetros da capital e com menos de 3.000 habitantes, Santa Mercedes integra a rede urbana da região de Presidente Prudente. Presidente Prudente é um dos nós da Rede Regional de Atenção à Saúde no Estado de São Paulo.

Ao encontrarmos nos pequenos municípios áreas com menor multiplicidade de atores e agentes econômicos em relação aos médios e grandes, poderíamos imaginar uma maior segurança destes frente à pandemia, onde as relações sociais aparentam ser mais próximas do sentido de comunidade e até na formação de uma rede do que chamaríamos de “vigilância comunitária” para alertar sobre questões básicas de prevenção da Covid-19, como isolamento social e uso de máscara em ambientes públicos. Porém, convém lembrar novamente a importância da dinâmica da rede urbana nesses espaços, pois se encontramos poucos deslocamentos rumo às pequenas cidades, o que reduziria a circulação do vírus, deve-se lembrar que, justamente por aparentemente termos ali um menor dinamismo econômico, a circulação de moradores dessas áreas para áreas maiores atrás de emprego, educação e mesmo tratamento médico cria a rota de uma possível entrada do vírus nessas áreas. Além disso, ao incrementarmos a dinâmica dos diferentes eixos econômicos e sua influência na dispersão do vírus, pequenas cidades em redes urbanas mais ricas apresentariam maior possibilidade de circulação do vírus do que outras áreas menores, mas em regiões mais pobres e de menor circulação e fluxos.

Convém lembrarmos também que “a ideia, por exemplo, de associar as cidades pequenas ao lugar de descanso, pacato e da produção econômica periférica, não é tomada sequer como hipótese nesta empreitada. Velhos modelos explicativos da hierarquia urbana são afastados e aqui se adotou o enfoque das interações espaciais diversas (…) sob a égide da Terceira Revolução Industrial e do papel das telecomunicações e das tecnologias de informação” (Sposito & Silva, Cidades Pequenas: perspectivas teóricas e transformações socioespaciais, 2013, Paco Editorial, p. 62). Dito de outra forma, a revolução tecno-científica, através dos avanços dos sistemas de transporte e a intensificação dos fluxos informacionais, criou uma nova percepção espaço-tempo e aquelas pequenas cidades que, no passado, como “fim da rede” hierarquicamente estavam distantes dos grandes centros, inclusive com dificuldades de acesso a eles, nos dias de hoje, mesmo mantendo-se como “fim da rede” apresentam maiores e mais diretas interações com os espaços superiores da hierarquia urbana.

Porém, se as interações entre os municípios menores e outros na mesma rede urbana se intensificaram, isto pode ser refletido pela forma como essas áreas agem diante da chegada da Covid-19, que nessas cidades apresenta efeitos devastadores. Estas interações com áreas maiores são facilmente percebidas quando a população afetada pela Covid-19 é obrigada a procurar atendimento nas áreas com maiores recursos de saúde pública, afinal nas menores cidades as condições de saúde apresentam-se mais precárias, com menor disponibilidades de UTIs, equipamentos como respiradores e mesmo materiais básicos, como máscaras e luvas para os profissionais de saúde. Além de aumentar as demandas das cidades maiores, a população das áreas menores se expõe aos riscos de buscar atendimento médico em cidades com maior presença dos casos da doença. Ou então, ao decidirem buscar atendimentos médicos nas áreas menores, confrontam-se com o histórico de omissões na formação de infraestrutura de saúde pública e verificam a escassez no atendimento de saúde básica que os municípios menores enfrentam, tornando o tratamento muito mais precário diante da necessidade de UTIs, por exemplo.

A pandemia de Covid-19 expôs a necessidade de fortalecermos a saúde pública e a importância do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), mas também apresentou as mazelas dessa estrutura que, com baixos investimentos e escassos profissionais, agride ainda mais as cidades pequenas, que, ao serem afetadas, apresentam os efeitos da pandemia com grande impacto sanitário. Esta situação só nos apresenta a importância de associarmos políticas públicas de enfrentamento da pandemia com a análise do ordenamento territorial, onde pensar as cidades em redes, estabelecer prioridades e analisar impactos em áreas de tradicionalmente menor investimento em saúde e infraestrutura, como nas pequenas cidades, podem minimizar o impacto de uma pandemia justamente nas áreas recentemente mais favoráveis para sua expansão. Enquanto isso não acontecer, os pequenos municípios vivem constantes colapsos em seus sistemas de saúde e colaboram para vivenciarmos o maior incremento de casos dessa pandemia, que agora tende a se expandir justamente para essas áreas menores.

As informações são do Jornal USP


*Fábio Bacchiegga, pós-doutorando do programa Cidades Globais USP, do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, e Maria da Penha Vasconcellos, professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP e do Cidades Globais USP.

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