Os três grandes desafios que a saúde enfrenta em 2023
Por Marcelo Gobbo Jr
Estamos quase na metade de 2023, um bom momento para refletir sobre as necessidades que o Brasil ainda precisa priorizar neste ano e os possíveis caminhos a serem seguidos. A começar com um diagnóstico a respeito da percepção da população sobre a saúde no Brasil. A pesquisa “A Saúde que os Brasileiros querem”, realizada pelo Instituto PoderData e contratada pela Agência Nacional de Hospitais Privados (ANAHP), por meio de ligações telefônicas aleatórias, mostrou que, quando questionados sobre a sua visão acerca da saúde no país em geral, apenas 10% dos entrevistados reportaram sua percepção como boa ou ótima, quase a metade — 43% dos entrevistados — relataram ruim ou péssimo.
Foram realizadas mais de 3 mil entrevistas com pessoas acima de 16 anos de 388 diferentes municípios brasileiros, sendo 83% usuários do SUS e 17% da saúde suplementar — um retrato proporcional da realidade da população do Brasil. O intervalo de confiança foi de 95%.
Ao tentar analisar os pontos de necessidade da população, pela ótica dos usuários do SUS, a maior necessidade percebida é a marcação de consultas (38%) e realização de exames (40%). A região sudeste é a que mais reporta necessidade de marcação de consultas (44%) e a região norte é a que mais reporta necessidade de realização de exames (52%). Esse resultado demonstra uma barreira evidente do acesso à saúde e estruturação da rede assistencial. Logo, duas faces do mesmo aspecto — o acesso à saúde — são problemáticos na percepção do usuário do SUS em diferentes regiões do país.
O estudo traz também a visão dos entrevistados sobre as prioridades para a saúde com a mudança de gestão ministerial prevista, naquele período. Lideraram o ranking de prioridades: a necessidade de inovação e novas tecnologias em saúde, seguidas de mais medicamentos disponibilizados pelo SUS. Este é um retrato que resume bem os principais desafios que o setor saúde está enfrentando em 2023.
Digitalização da saúde
A necessidade de digitalização da saúde é uma realidade acelerada pela pandemia de Covid-19. Com a pressão exercida pela emergência sanitária, o uso da Telemedicina foi impulsionado e se consolidou como uma importante ferramenta para a garantia do acesso à saúde. Contudo, a ampliação do uso de tecnologias na área da saúde jogou luz sobre outras necessidades e desafios do setor.
Num ano em que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) se confronta com a regulamentação da Telemedicina, a governança de dados clínicos se tornou um assunto ainda mais sensível. Garantir a transferência e o acesso às informações de forma segura é crítico para o ponto de vista do usuário, mas também para os gestores em saúde que dependem dos dados epidemiológicos atualizados e em tempo real para permitirem a equidade na distribuição de recursos, na saúde pública e na saúde suplementar, trazendo sustentabilidade para o setor.
Soma-se a isso a necessidade de ampliar a utilização de prontuários eletrônicos do paciente para a realização dos registros de saúde. A informatização dos serviços de saúde, que já vinha acontecendo ao longo da última década, ficou mais acelerada, porém os entendimentos do registro seguro têm imposto aos serviços uma adequação de sistemas que é desafiadora — especialmente para fazer com que os diferentes sistemas de registro contenham as informações necessárias e as guarde com segurança.
Se por um lado a maré de desafios é grande, por outro, o mar de possibilidades também é vasto. No campo do oceano azul da saúde, a chegada da rede de dados móveis 5G com maior estabilidade e menor período de latência permite pensar o quanto as estratégias utilizadas até aqui podem se capilarizar mais e permitir o acesso de profissionais de saúde em tempo real a pacientes nas mais diversas condições clínicas, cirúrgicas, de urgência e emergência. O que faz com que a entrada dos usuários nos seus serviços de saúde possa ser cada vez mais assertiva.
Um outro grande potencializador disso é a ‘internet das coisas’, permitindo a coleta de dados de saúde a todo instante, com um entendimento cada vez maior das dinâmicas populacionais de saúde e possibilitando uma gestão de saúde orientada por big data. Essa é uma realidade para a saúde suplementar já, uma promessa para a saúde pública e um desafio do setor de saúde.
Desafios para o SUS
Os últimos dois anos foram de muita pressão sobre o sistema de saúde brasileiro. A emergência da Covid-19 causou uma necessidade de estancamento da crise sanitária imediata e um acúmulo de outras demandas referentes às condições crônicas e demais agravos de saúde que foram se somando ao longo desse período. Essa situação ímpar gera, na conjuntura política brasileira, um colorido de necessidades para além do que já foi mencionado até aqui.
Um exemplo desses desafios pode ser constatado na queda da cobertura vacinal observada em todo o território nacional, atingindo os valores mais baixos dos últimos 30 anos. O índice de vacinação considerado ideal é de mais de 90%, contudo, desde 2012 essa meta não é alcançada, sendo que a partir de 2016 a cobertura é crítica, ficando em 50,4% e 60,7%, segundo os dados do DATASUS do Ministério da Saúde.
A necessidade de reestruturação do programa nacional de imunizações é um exemplo do quanto o acesso à saúde é prioridade. Por muitas vezes, pensamos acesso como a necessidade do usuário agendar uma consulta ou o tempo de espera para uma consulta com o especialista. Isso é acesso, mas também, é acesso à informação que o usuário tem para se decidir sobre marcar o agendamento ou não, a sua jornada após a tomada de decisão em marcar a consulta, o tempo de espera entre sua intenção e o dia da consulta, o dimensionamento da urgência e o quanto essa consulta pode esperar. Tudo isso são aspectos derivados da ideia de garantir acesso e acessibilidade à saúde. O programa Estratégia de Saúde da Família é uma das soluções para esse problema, utilizando da navegação em saúde, função exercida na figura de quem atua como Agente Comunitário de Saúde (ACS), mas que embora abarque mais de 160 milhões de pessoas no Brasil, não consegue solucionar em sua totalidade os problemas do acesso.
Impactos da pandemia
Os impactos da pandemia do novo coronavírus sobre a organização do sistema de saúde são evidentes. Além do efeito em relação à necessidade de ampliação de cobertura vacinal e do comportamento de surtos intermitentes nomeados como ondas de Covid-19, as consequências ainda são sentidas nos demais campos das redes de atenção à saúde.
Ao longo dos últimos anos, não só as consequências diretas de Covid-19 têm se evidenciado como também os vazios assistenciais gerados pelo distanciamento entre profissionais de saúde e população. Como consequência disso, doenças crônicas não transmissíveis têm sido subdiagnosticadas e subcontroladas, de forma que manifestações de urgências evitáveis têm sido mais frequentes. Além disso, programas de rastreamento como os de neoplasias de mama e intestino foram impactados, gerando uma incidência maior de casos e de formas mais graves. Por essa razão, o gargalo do acesso nunca foi tão urgente.
Por outro lado, o vazio assistencial provocado pela perda de profissionais assistenciais ou de seu adoecimento e estafa também impactam a capacidade de prestação de atendimento nos diversos níveis de atenção. Tanto na equipe assistencial quanto na população, os problemas de saúde mental são mais evidentes e mais graves. Esse tipo de consequência já foi observado em outras epidemias, como as SARS e MERS em toda a Ásia, e para o Brasil é mais um desafio que está sendo enfrentado em 2023, período de pico das consequências tardias de epidemias anteriores e que precisaremos adequar forças para enfrentar.
*Marcelo Gobbo Jr. é Médico de Família e Comunidade, comunicador de saúde e editor de Medicina de Família e Comunidade do Portal PEBMED, da Afya.