Por que o software ainda não “devorou” a indústria da saúde?
Em 2011, Marc Andreesen, um dos investidores mais renomados do mundo, escreveu um ensaio que se tornou uma lenda. Originalmente publicado pelo The Wall Street Journal, o texto traz logo no início uma frase que se tornou um mantra para a indústria de tecnologia atual: “O software está devorando o mundo”. Então, parágrafo após parágrafo, ele apresenta exemplos de empresas que estão disruptando diversas indústrias, como Amazon, Netflix, Apple, Pixar, LinkedIn e Google.
Mais adiante, Andreesen diz que “a saúde, na minha opinião, é a próxima transformação fundamental baseada em software”. Essa frase, porém, não ficou tão famosa quanto a anterior – possivelmente porque, mais de uma década depois, a saúde segue estagnada. Até agora, o desenvolvimento de software para o setor avançou em alguns aspectos pontuais, mas a maior parte do mercado permanece inalterada.
É surpreendente que Andreesen tenha vislumbrado essa transformação como iminente bem na época em que seu mentor, o brilhante James Clark (que ainda é reverenciado como um dos pais do Vale do Silício), desistiu do sonho de “usar o poder da computação e da internet para revolucionar o setor de saúde, eliminando suas ineficiências e desigualdades e aperfeiçoando-o para o novo milênio”, ao vender os restos mortais da sua empresa, a Healtheon, para a provedora de conteúdo médico WebMD.
Todos os anos, cerca de US$ 400 bilhões são gastos em saúde somente na América Latina. As ineficiências são gigantes. Sabemos que mais da metade da despesa, ou seja, cerca de US$ 200 bilhões, pode ser evitada usando o conhecimento médico que temos hoje. Então, se temos essa imensa oportunidade, por que a saúde, em geral, opera em modelos arcaicos?
Por um lado, as dificuldades na saúde não são diferentes de outras indústrias: fragmentação, complexidade e falhas na transferência e no uso de informações. Mas há três outros aspectos que são únicos.
Em primeiro lugar, o setor de saúde é altamente regulado e os sistemas variam de país para país, o que exige soluções locais, algo bastante incomum na indústria de tecnologia, que tende a ser global por natureza. A abordagem “fabricado na Califórnia, enviado para o mundo todo” não funciona aqui.
Em segundo lugar, a regulação espinhosa também é um desafio para o acesso a dados, que residem em vários sistemas, às vezes fora do alcance do típico player de tecnologia.
A terceira parte do problema é o desalinhamento. Uma característica quase exclusiva da área de saúde é o sistema de decisão de agente triplo: paciente, médico e operadora precisam estar sempre sincronizados para o setor funcionar.
A saúde precisa de software para corrigir a fragmentação e as falhas de informação. Clark e Andreesen entenderam isso. Mas o software não faz isso sozinho: é preciso um player estrategicamente posicionado para ter acesso a dados relevantes e unir as pontas desalinhadas.
A tecnologia se desenvolveu de tal forma que agora é possível construir uma plataforma habilitada digitalmente que usa o software como uma espécie de “cola” para corrigir a fragmentação e as falhas na comunicação. Para ser eficaz, o sistema precisa projetar um agente de mudança estrategicamente posicionado na cadeia de valor da saúde. Em artigo recente, Daisy Wolf e Vijay Pande, dois investidores do Vale do Silício, se arriscaram na concepção dessa figura. “Nossa aposta”, disseram eles, “é que o gigante da saúde do futuro não será uma das grandes empresas de tecnologia ou de saúde atuais. Será uma empresa com DNA de tecnologia em saúde obcecada pelo consumidor, que reimagina como pode poderá ser o cuidado”.
A saúde é, provavelmente, a indústria com a maior quantidade de espaço em branco na economia. Há espaço ilimitado para melhorar a experiência do cliente e construir grandes empresas no processo. Nossa expectativa é que em breve veremos esses novos players oferecendo engajamentos melhores, resultados clínicos robustos e economia incomparável.
De fato, já estamos vendo alguns movimentos nesse sentido, que ainda são incompletos. Há algumas startups pequenas atuando em nichos de early adopters. Mas a dinâmica é implacável. No livro Crossing the Chasm (2021), Geoffrey Moore nos ensina que poucos projetos vão “atravessar o abismo”, “escalar o tornado” e crescer para eventualmente trazer disrupção para a saúde. Estamos à beira dessa revolução: o software vai devorar a saúde. É hora de se preparar para o grande banquete.
*Mariano García-Valiño é fundador e CEO da Axenya.