Os desafios de financiamento do Sistema Único de Saúde
O Sistema Único de Saúde (SUS) completou 30 anos em 2018 com a estatura de um gigante. Criado pela Constituição de 1988 para transformar em realidade uma de seus grandes avanços — o direito de todos os brasileiros à saúde —, o SUS hoje cobre mais de 200 milhões de pessoas, 80% delas dependentes exclusivamente do sistema para qualquer atendimento médico.
Mas essa cobertura universal, que dá ao SUS o título de uma das maiores redes de saúde pública do mundo, também representa um enorme desafio para o novo governo: financiar e gerir esse colosso. O Orçamento da União deste ano destina ao setor R$ 132,8 bilhões. Em 2018, foram autorizados R$ 130 bilhões, dos quais apenas R$ 108 bilhões acabaram efetivamente executados.
Parece muito dinheiro, mas o valor cobre apenas as despesas básicas de manutenção do sistema, sem margem para investimento.
Essa situação é percebida pelos pacientes, que reclamam de demora nos atendimentos, dificuldades nas marcações de consultas e cirurgias, falta de médicos e de medicamentos.
Para especialistas em gestão de saúde, são necessárias mais verbas e uma melhor administração dos recursos. É o que destaca Carlos Vital, presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM):
— Nos últimos oito anos, tivemos 34 mil leitos fechados no país. Do orçamento da saúde, que já não é suficiente, deixaram de ser utilizados R$ 174 bilhões [desde 2003]. É mais que o orçamento de um ano. Então falta orçamento adequado, falta infraestrutura. E falta competência administrativa para se utilizar bem o pouco de que se dispõe.
Em novembro, o CFM divulgou um estudo que mostra que o investimento público brasileiro em saúde é baixo em comparação ao de países com sistemas semelhantes de cobertura universal. De acordo com o levantamento, o gasto governamental médio por habitante em 2017 foi de R$ 1.271,65 (cerca de US$ 340), somando-se todas as esferas — União, estados e municípios. No Reino Unido, considerado modelo de sistema universal, por exemplo, o gasto per capita foi dez vezes maior: US$ 3,5 mil, valor semelhante aos aplicados por França e Canadá, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Mesmo a Argentina, com US$ 713, investiu mais do que o dobro.
Além do baixo investimento per capita, a participação pública no total de gastos em saúde é insuficiente, dizem especialistas. No Brasil, os cofres governamentais custeiam 43% dos gastos totais no setor. O restante é arcado pelas famílias com serviços de saúde privados, como planos de saúde e compra de medicamentos. No Reino Unido, a participação estatal no gasto total chega a 80%.
— Nenhum país do mundo que se propõe a fazer um sistema único de saúde tem um financiamento por parte do governo central de menos de 65%. Consequentemente, o primeiro problema é falta de financiamento adequado, seguido de perto pela questão da falta de gestão adequada, de políticas adequadas. Só que até para contratar gestores qualificados nós precisamos ter financiamento adequado — avalia o presidente da Associação Médica Brasileira, Lincoln Lopes Ferreira.
Ao mesmo tempo em que sofre com subfinanciamento, o SUS vê crescer a demanda por seus serviços, motivada por mudanças nos perfis socioeconômico e epidemiológico dos brasileiros. Entre elas, o envelhecimento da população, o aumento dos acidentes de trânsito e da violência e o crescimento do desemprego — que fez com que quase 3 milhões de pessoas abandonassem os planos de saúde nos últimos anos, aumentando a procura pela rede pública.
Em seu plano de governo, no entanto, o presidente da República, Jair Bolsonaro, indicou que não pretende aumentar o percentual destinado à saúde, afirmando que “é possível fazer muito mais só com os atuais recursos”. O novo ministro da Saúde, o ex-deputado federal e médico ortopedista Luiz Henrique Mandetta, sustenta que a saída é melhorar a gestão e o controle do dinheiro. Em seu discurso de posse, Mandetta afirmou que o Ministério deve caminhar para a redução de custos, com maior eficiência nos gastos. Ele prometeu, porém, que não haverá retrocessos.
— Vamos cumprir os desafios constitucionais. Saúde é direito de todos e dever do Estado.
Teto de gastos agravará subfinanciamento, temem especialistas
O dinheiro que pode ajudar a melhorar o sistema anda cada vez mais raro. Com a entrada em vigor da Emenda Constitucional 95, que determina um teto para os gastos públicos, a situação tende a piorar, temem especialistas.
Pela lei, cada ente federativo deve investir na saúde percentuais mínimos dos recursos arrecadados. Estados e o Distrito Federal precisam destinar pelo menos 12% do total de seus orçamentos. No caso dos municípios, o índice é de 15%. Para a União, a regra determina a aplicação mínima de 15% da receita corrente líquida. Com a EC 95, que vale por 20 anos, o aumento de despesas do governo em relação a esse valor mínimo fica limitado à inflação do ano anterior — e pode até ficar abaixo da variação inflacionária, como ocorreu neste ano.
Com esse risco de queda de investimento, o SUS, que ainda é referência em sistema de saúde para muitos países, pode se transformar em pesadelo para usuários e gestores. Segundo Luiz Fachinni, da Associação de Medicina Coletiva, a saída seria suspender a emenda que determinou o teto de gastos.
— Que o próximo governante, na sua relação com o Congresso e com a sociedade, suspenda o efeito da Emenda Constitucional 95 e passe a ter maior liberdade, evidentemente que com equilíbrio fiscal e controle das contas públicas, de fazer investimento maior no Sistema Único de Saúde sem o impedimento dessa norma.
Assessora do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), a especialista em orçamento público Grazziele David também avalia que um primeiro passo para melhorar o custeio do setor seria revogar a emenda do teto de gastos. Para ela, o teto cria uma barreira para o financiamento não só na saúde, mas nas demais políticas públicas. Para garantir a responsabilidade fiscal sem comprometer o direito ao atendimento, ela sugere medidas para aumentar a arrecadação governamental.
— Uma delas seria uma reforma tributária progressiva, que permitiria promover justiça fiscal e social, redistribuir a carga e melhorar a arrecadação. Com maior valor arrecadado, daria para direcionar ao financiamento de muitas políticas, e passaria-se a investir mais em investimentos sociais, que estão muito baixos. Por exemplo, saneamento básico, que emprega muita gente, melhora a economia, gera receita e diminui muito o custo na saúde — disse Grazziele.
A especialista também defendeu maior participação de recursos públicos no sistema.
— Temos sempre que lembrar que o SUS sofre de subfinanciamento. Apesar de termos um valor mínimo que deve ser aplicado, esse valor mínimo é muito baixo. As porcentagens que são aplicadas do PIB e despesas correntes são inferiores às de outros países em que há sistemas universais de saúde.
Em 30 anos, sistema melhorou indicadores do país
Apesar das dificuldades, o SUS tem bons resultados para mostrar. Um exemplo é a redução da mortalidade infantil. Nos anos 80, o IBGE registrava uma taxa semelhante à que hoje exibe a Somália. Eram 82,8 mortes por cada mil nascimentos. Em 1994, a taxa brasileira já tinha caído para 37,2 e em 2015 o número era de 13,3.
Esses índices tornam o Brasil uma referência em saúde pública para muitos países, segundo Armando Baggio, ex-diretor do Hospital Universitário de Brasília.
— Em 30 anos, a gente reduziu em 70% a mortalidade infantil. O exemplo do calendário de vacinas do Brasil é reconhecido mundialmente e isso foi possível por meio do SUS.
Hoje os brasileiros também envelhecem com mais qualidade e morrem mais tarde. Nos anos 1980, a expectativa de vida era de 69 anos. Em 2018, de 76 anos. Segundo especialistas, esses méritos são do SUS, reconhecido internacionalmente como modelo de sistema de saúde, segundo o pesquisador Luiz Augusto Facchini, coordenador da Rede de Pesquisas em Atenção Primária à Saúde e integrante da Associação Brasileira de Saúde Coletiva.
— Atualmente a Estratégia Saúde da Família do SUS cobre mais de 130 milhões de brasileiros com cerca de 40 mil equipes de Saúde da Família organizadas em todo o território nacional. Outro elemento muito importante de avanço do SUS nesses 30 anos foi a universalização da alta complexidade, que são aqueles procedimentos mais caros, mais especializados, realizados em lugares de ponta para o atendimento, por exemplo, do tratamento de câncer ou transplantes.
Para o Conselho Nacional de Saúde, o diferencial do SUS é que ele não visa ao lucro, mas sim à redução da mortalidade e à cura de doenças, explica o ex-presidente da entidade Ronald dos Santos.
— O diferencial do SUS é que ele coloca no centro da atividade a vida das pessoas, e não o negócio. O centro do sistema é fazer com que as pessoas não sofram, vivam mais e melhor. É o centro do que o Brasil colocou em sua Constituição — conclui Santos.