Fronteiras fechadas: necessário ou violação de direitos humanos?

Por Michele Hastreiter

No dia 25 de janeiro, o Brasil publicou a Portaria n° 652/2021 para tratar da restrição de ingresso em território nacional, visando mitigar a disseminação do coronavírus. Desde o início da pandemia, foram editadas inúmeras portarias com conteúdo semelhante. A principal mudança trazida pela mais recente foi a proibição de ingresso de pessoas que tenham estado no Reino Unido e na África do Sul nos últimos 14 dias, adotada em razão das variantes do SARS-Cov-2 identificadas nesses países. Brasileiros que tenham vindo destes locais precisarão permanecer em quarentena por igual período.

O próprio Brasil também tem sido alvo de medidas semelhantes em outras nações. Em razão do descontrole da doença em nosso território e das mutações identificadas no Amazonas, o ingresso de brasileiros está proibido em ao menos 30 países.

Apesar disso, não há consenso entre pesquisadores sobre a eficácia sanitária dessas determinações. Estudo publicado em maio de 2020 no boletim da Organização Mundial da Saúde, por exemplo, demonstrou um impacto pequeno das medidas de restrição de viagem na transmissão da doença. Já um parecer elaborado pelo Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário da USP concluiu que as medidas restritivas são pouco justificáveis quando já há transmissão sustentada da doença no país que as implementa.

Se a eficácia das medidas é ponto controverso, o agravamento das situações dramáticas de alguns imigrantes não é, especialmente quanto aos refugiados, categoria especial de imigrantes que se caracterizam pela impossibilidade de permanecer em seus países de origem em razão de perseguições injustas ou de graves e generalizadas violações de Direitos Humanos. Nesses casos, migrar é uma necessidade. Por isso, o Direito Internacional estabeleceu regras especiais para a proteção dessas pessoas, tendo como pilar básico o princípio do non-refoulement: a proibição da devolução do refugiado a um país onde possa estar em risco.

Mas as restrições implementadas pelo governo brasileiro não atentam à peculiar situação dos refugiados. Ao contrário: discriminam venezuelanos, violam a Constituição Federal e contrariam disposições expressas de textos legais acerca da temática.

A Portaria n° 652/2021 segue restringindo a entrada de indivíduos não nacionais por meios terrestres ou pelo transporte aquaviário, com algumas poucas exceções. Nenhuma delas, contudo, aplica-se aos venezuelanos, cujo ingresso no país está proibido desde o início da pandemia.

Desde 2018, o Brasil tem sido um dos principais destinos da diáspora venezuelana, o maior êxodo latino-americano da história. Mais de 45 mil venezuelanos já foram reconhecidos como refugiados por aqui, em razão das graves violações de direitos humanos em seu país de origem. Outros 100 mil aguardam resposta às suas solicitações de refúgio. E os venezuelanos, importante ressaltar, são considerados refugiados aos olhos do Direito brasileiro e do Direito Internacional.

Apesar disso, as medidas de restrição de fronteiras implementadas pelo Brasil são especialmente restritivas para os venezuelanos. Ao contrário dos casos do Reino Unido e da África do Sul, sequer há na Venezuela circunstâncias objetivas capazes de justificar a restrição. Trata-se, portanto, de discriminação indevida, que fere o mandamento de igualdade previsto no artigo 5° da Constituição Federal.

Ainda que se afirme que os dados sobre a pandemia na Venezuela não são confiáveis, as sanções previstas na Portaria também não condizem com as normas de proteção dos refugiados. Segundo o texto, se alguém tentar entrar no Brasil sem observar as restrições, poderá sofrer com responsabilização civil, administrativa e penal, repatriação ou deportação imediatas e inabilitação de pedido de refúgio. Não obstante, a Lei 9.474/1997 estabelece claramente que o ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento para a solicitação de refúgio.

O princípio basilar da dignidade da pessoa humana também veda a expulsão dos venezuelanos e a inabilitação do pedido de refúgio pelo ingresso durante a pandemia. Trata-se, portanto, de mais uma medida do Governo Federal em descompasso com os Direitos Humanos e que, pode, inclusive, ensejar a responsabilização internacional do Estado brasileiro.

A vida em tempos de pandemia é desafiadora para todos. Para alguns, no entanto, o desafio é maior do que para outros. Os refugiados venezuelanos enfrentam, além dos riscos trazidos pela doença, o recrudescimento das medidas restritivas à circulação internacional de pessoas e, no caso brasileiro, a xenofobia numa política oficial, travestida de medida de combate à pandemia.


*Michele Hastreiter é professora do Curso de Direito Migratório da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

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