Pesquisa: As desconfianças geradas pela Covid-19
Por Kadu P.
A pandemia do SARS-CoV-2, o novo coronavírus, impulsionou diversas mudanças profundas no comportamento das pessoas ao redor do mundo, principalmente causadas pelos esforços de isolamento social para controle epidemiológico da transmissão do vírus. Analistas acreditam que embora algumas das transformações sejam passageiras, como os lockdowns, outras podem acabar se enraizando mais profundamente como parte da sociedade do futuro, a flexibilização do trabalho em home office que provou-se eficiente para muitas empresas é um exemplo disso.
Porém, a pandemia também deixou extremamente evidentes e, mais do que nunca, relevantes algumas desconfianças por parte da população em geral, demonstrando a necessidade de reavaliar atitudes governamentais, nossas expectativas quanto a direitos fundamentais, e a necessidade da comunicação científica eficiente por parte de pesquisadores e agentes de saúde para combater as fake news.
Baixa confiança no Governo
Quando a sociedade é acometida por um problema em escala global, que demanda medidas coletivas e colaborativas, o papel do Estado se torna fundamental – É somente através de medidas públicas que o combate inteligente à doença pode acontecer de forma eficiente. É preciso que governos trabalhem junto com médicos, biólogos e outros agentes da área da saúde para implementar medidas de contenção, tomar decisões econômicas viáveis, entre outras ações que jamais poderiam acontecer sem uma entidade única sob controle da situação.
É por isso que governos sem a confiança de suas populações se tornam especialmente perigosos em nossas atuais circunstâncias. E há motivos para desconfiar, em Minas Gerais, por exemplo, casos de Covid-19 estão sendo subnotificados propositalmente em postos de saúde e estatísticas. Isso degrada a imagem das autoridades públicas perante aos cidadãos, que buscam fontes alternativas para se informar sobre a doença.
Em uma pesquisa realizada por uma empresa de privacidade digital, nos Estados Unidos, foi demonstrado que a maioria dos entrevistados possuíam mais confiança em sites de tecnologia do que em sites governamentais ao buscar notícias sobre a doença. O problema é que nem sempre esses sites possuem o conhecimento técnico para interpretar corretamente os dados científicos. Nos piores casos, autores mal-intencionados podem abusar do vácuo de confiança para disseminar notícias falsas com interesses políticos, atingindo um grande número de pessoas graças ao poder de alcance das redes sociais.
Desconfiança na tecnologia
Uma das grandes revoluções da medicina moderna e contemporânea foi o emprego de engenharias e ciências multidisciplinares para integrar a tecnologia no combate às doenças. Máquinas de ressonância magnética usam o mais avançado conhecimento de física do eletromagnetismo, e os baratos e acessíveis oxímetros de pulso só foram possíveis graças às inovações tecnológicas na área de fotossensores e fotodiodos.
No combate à pandemia do novo coronavírus algumas tecnologias têm sido implementadas para realizar o monitoramento e controle populacional, como é o caso das técnicas de rastreamento de contatos recentemente implementadas pela Apple e Google em seus smartphones. A técnica permite que os aparelhos mantenham uma lista de usuários com quem cada indivíduo cruzou por seu caminho, sendo portanto possível notificar todos aqueles que estiveram próximos a alguém infectado. No Brasil, o Governo Federal, em parceria com empresas de telefonia, passou a usar as redes de dados móveis para monitorar a localização de cada aparelho celular, assim podendo medir aglomerações, frequência em postos de saúde, e eventos, permitindo a tomada de decisões baseada em padrões de comportamento.
O problema é que tais técnicas podem ser consideradas graves invasões para a privacidade dos usuários. Em uma pesquisa conduzida pela mesma empresa, constatou-se que 75% das pessoas consideravam o rastreamento de contatos uma técnica invasiva à sua privacidade pessoal, enquanto 77% temiam que sua privacidade seria comprometida indefinidamente, mesmo no futuro após o término da quarentena. Apesar disso, uma maioria de 59% afirmou concordar em sacrificar parte de sua privacidade em nome do bem público, constatando que se devidamente explicadas e implementadas, tecnologias de rastreamento podem ajudar no combate a essa e outras doenças.
Figuras como Edward Snowden, bastião da privacidade online e ex-agente da NSA, demonstraram publicamente preocupação com a forma como gigantes da tecnologia e governos iriam lidar com os dados privados dos usuários durante a pandemia. Muitas pessoas estão buscando formas para preservar a privacidade digital durante esse período complicado. Evitar o rastreamento é possível, por exemplo, seguindo um guia sobre VPNs para manter-se anônimo.
O papel do profissional da saúde
No período histórico atual, apelidado de “era da pós-verdade”, jornalistas passaram a ter mais responsabilidades além da tradicional coleta de dados e produção de notícias: O fact checking, isso é, a checagem dos fatos para combater notícias falsas e instruir a população para fatos verídicos, livres de manipulação.
Da mesma forma, é crucial que todo e qualquer profissional da saúde também adicione ao seu repertório de funções o combate às informações falsas, a preocupação com a tradução do conteúdo científico para o público leigo, e a vigilância dentro e fora do mundo virtual. Notícias que podem parecer absurdas para especialistas, como a ideia de que antenas de 5G causariam a Covid-19, conseguem convencer um grande número de pessoas que não possuem familiaridade com o meio acadêmico. Na verdade, por muitos anos, a separação entre o universo acadêmico da medicina e o público em geral criou um fenômeno de elitismo nas informações, quase que restringindo o acesso dos fatos a apenas um grupo privilegiado de profissionais. A democratização do conhecimento científico é o único caminho para vencermos uma pandemia.
Conclusão
A tecnologia e ações governamentais são fundamentais para chegarmos a uma solução para a pandemia do novo coronavírus. No entanto, muitas vezes o público em geral rejeita sua participação devido ao mal uso de seus direitos ou falta de informações concretas e acessíveis. Cabe a todos os profissionais, cada um em sua área de expertise, o combate às notícias falsas e a defesa de nossos direitos básicos para restaurar a confiança nas medidas importantes de controle epidemiológico. Veja também como a pandemia deve intensificar a transformação digital na saúde.
*Kadu P. é redator para a TechWarn com ênfase nas áreas da tecnologia e saúde, sempre buscando conhecer mais sobre a interação entre elas.