Inovação e acesso para revolucionar a saúde
As gerações com mais de 35 anos certamente se lembram de uma época em que a epidemia de AIDS causou pânico em todo o mundo, ceifando milhões de vidas, nas décadas de 1980 e 1990. Ainda sem um tratamento eficaz disponível, contrair o HIV era como uma sentença de morte diante de um vírus que não escolhia cor de pele, escolaridade ou classe social. Graças à evolução da ciência e das tecnologias, em especial nos últimos 15 anos, que foi possível chegar a soluções capazes de limitar a transmissão, tornando esses tempos apenas tristes lembranças que não voltam mais. Hoje em dia, novos casos de contaminação por HIV e mortes em decorrência dele basicamente são frutos de dois fatores: falta de diagnóstico e falta de acesso à medicação adequada (muitas das vezes, sendo o segundo fator consequência do primeiro).
O caso mencionado acima é um exemplo evidente e atual de como a inovação e a ampliação do acesso a tratamentos adequados vêm, juntas, revolucionando a medicina. Trinta e cinco anos atrás, quem diria que uma pessoa com HIV poderia viver uma vida com qualidade e longevidade, tendo apenas como rotina diária tomar alguns comprimidos? Tal qual a lenda grega de Perseu que, com inteligência, destreza e abordagem acertada, derrotou a temida e até então invencível Medusa, o binômio mencionado acima, embora não tenha chegado ao que podemos chamar de cura, foi capaz de trazer esperança, tranquilidade e expectativa de vida a quem recebe um resultado reagente para o vírus.
Outro “monstro” nada mitológico, que segue como enorme desafio, é o câncer e suas mais de cem variações. Segunda maior causa de mortes no Brasil, somente em 2025 são esperados mais de 700 mil novos casos em todo o país. E vivemos um paradoxo em relação a isso: quanto mais a ciência avança e nos permite aumentar a expectativa de vida da população, maior a prevalência de câncer. Até o momento, os mesmos esforços que nos ajudam a prolongar a vida na terceira idade ainda não são capazes de fazer com que os casos da doença entrem em declínio.
Além da idade mais avançada, que naturalmente nos torna mais suscetíveis a mutações genéticas que resultem em tumores, outros fatores comuns em nosso dia a dia são apontados como possíveis riscos oncogênicos: o consumo de agrotóxicos, a presença de corantes e outros aditivos nos alimentos, poluição ambiental, a disseminação silenciosa de determinados vírus, como o HPV ou das hepatites virais (B, C e, mais recentemente classificada neste rol, a do tipo D), entre outros. Infelizmente, nossa exposição a uma ou mais dessas variáveis é praticamente inevitável e, somada ao envelhecimento populacional, nos permite estimar que tenhamos uma escalada no número de casos de câncer na próxima década, de 2030.
A única forma que temos de reverter esse quadro é exatamente investindo na combinação de inovação e ampliação do acesso. Seja no tratamento, seja na prevenção. Uma técnica promissora, que deixou o meio científico bastante esperançoso e que pode representar uma revolução no combate ao câncer, é a vacina formulada com RNA mensageiro (mRNA). Sua tecnologia utiliza a molécula de mRNA envolta em partículas de gordura microscópicas para levar instruções às células e gerar uma resposta imunológica.
Curiosamente, o mecanismo foi empregado pela primeira vez de forma ampla muito recentemente: nas vacinas para controlar a pandemia de covid-19, em que o mundo teve que desenvolver, em tempo recorde, técnicas inovadoras (e seguras) para evitar uma tragédia ainda maior causada por aquele coronavírus. A nova abordagem vacinal começou a ser testada em outras frentes e se mostrou eficaz no combate a alguns tipos de câncer quando combinada com os atuais medicamentos imunoterápicos. Nos experimentos em camundongos, ela foi capaz de estimular o organismo a combater diferentes tipos de tumor, em muitos casos fazendo-os desaparecer por completo – incluindo os resistentes a tratamento.
A medicina vive de evoluções, mas, sobretudo, de revoluções. Assim foi com o desenvolvimento da primeira vacina, com o advento da anestesia, com a descoberta da penicilina; assim tem sido com os tratamentos antirretrovirais para o HIV e nas novas tecnologias que nos permitiram voltar à normalidade após a pandemia de covid-19. De cada um desses marcos, pudemos tirar diversos aprendizados que, universalizados, trouxeram mais saúde e qualidade de vida à Humanidade. Que o otimismo trazido pelos primeiros (e promissores) testes possa se converter em realidade brevemente e sacramentar a vacina de mRNA como ferramenta eficaz na luta contra o câncer, assim como a mitológica Harpe, a espada empunhada por Perseu, o fez na vitória sobre a Medusa. Que esses monstros, sejam mito ou realidade, estejam longe de nos assombrar mais no futuro.
*Carlos Gil Ferreira é oncologista torácico, pesquisador e presidente do Instituto Oncoclínicas.