Como a inteligência artificial pode fortalecer a atenção primária

Por Raphael Saraiva

Entre os exames laboratoriais de rotina, o hemograma completo (contagem de células do sangue) ocupa posição de destaque. Ele é muitas vezes solicitado como parte de qualquer avaliação inicial – seja em consultas de atenção primária, seja em prontos-socorros – por ser barato, acessível e informativo. Mais do que indicar anemia ou infecção, o hemograma pode ser a porta de entrada para flagrar doenças graves em estágio inicial. O principal exame para suspeitar de leucemia, por exemplo, é o hemograma, cujo uso adequado viabiliza detectar precocemente esse câncer do sangue e melhorar muito as chances de sucesso no tratamento de acordo com o Ministério da Saúde. Detecção precoce é fundamental: diagnósticos tardios dessas doenças estão associados a desfechos piores e tratamentos mais agressivos.

O problema é que interpretar um hemograma detalhadamente nem sempre é trivial para médicos generalistas. Na prática cotidiana, o clínico ou médico de família costuma checar se “está tudo dentro dos parâmetros de referência” e focar em achados mais comuns. Se o paciente apresenta anemia, por exemplo, é frequente que se prescreva suplementação de ferro de imediato, presumindo carência nutricional, sem investigar a fundo a causa da anemia. Isso funciona na maioria dos casos benignos, mas pode ser perigoso quando a anemia é, na verdade, sintoma de algo mais sério. Anemias persistentes podem ser indícios de doenças graves como leucemias, mielomas múltiplos ou síndromes mielodisplásicas, nas quais a simples suplementação de ferro não resolverá o problema e ainda pode mascarar temporariamente a evolução da doença, retardando o diagnóstico. Cada mês de atraso permite que o quadro se agrave – eventualmente, um câncer de sangue inicial pode evoluir para um estágio avançado, exigindo tratamentos muito mais complexos e caros, ou até se tornar incurável.

Um caso real ilustra bem esse ponto. Minha avó, 89 anos, sofreu com fadiga e hematomas, possíveis sinais sugestivos de alterações hematológicas. O médico generalista detectou anemia em seu hemograma e receitou ferro, atribuindo o quadro à deficiência nutricional.

No entanto, ela não melhorou. Por nove meses, peregrinamos por diferentes especialistas enquanto os sintomas pioravam, até que finalmente conseguimos uma consulta com um hematologista especializado em anemias. Bastou o médico analisar atentamente o hemograma para suspeitar do diagnóstico e pedir uma biópsia de medula óssea – confirmando, então, uma Síndrome Mielodisplásica (SMD). Ou seja, um exame simples que estava disponível desde o início já continha pistas da doença, mas faltou quem as interpretasse corretamente. Histórias como essa revelam brechas importantes no modelo atual: a atenção primária dispõe dos exames, mas carece de suporte especializado para extrair deles todo o seu valor clínico.

Inteligência artificial: um novo aliado para atenção primária

Diante do volume crescente de exames e da escassez de especialistas, a tecnologia desponta como aliada estratégica. Em particular, ferramentas de Inteligência Artificial (IA) aplicadas à análise de exames laboratoriais têm potencial de empoderar o médico generalista e aumentar a eficácia da triagem na ponta do sistema de saúde. Já existem evidências concretas desse potencial: um estudo recente conduzido por pesquisadores brasileiros e publicado na Scientific Reports mostrou que algoritmos de machine learning conseguem identificar padrões sutis em hemogramas associados a câncer, antecipando sinais de doenças como o câncer de mama a partir de variações discretas nas células sanguíneas. Essa “visão de máquina” vai além do olho humano treinado – a IA é capaz de correlacionar múltiplos parâmetros simultaneamente. Por exemplo, um aumento na razão neutrófilo/linfócito (que isoladamente poderia passar despercebido se dentro dos limites de referência) foi identificado pelo algoritmo como um indicador precoce em pacientes com câncer, mesmo antes de alterações detectáveis em exames de imagem. Em essência, a IA opera como uma lente de aumento, percebendo padrões complexos que um médico, pressionado pelo tempo e volume de informações, pode não notar.

Na atenção primária, isso significa que cada hemograma poderia vir “acompanhado” de uma segunda opinião automatizada. Imaginemos o cenário ideal: o clínico geral solicita um pacote de exames de rotina e, ao receber os resultados, conta com um sistema inteligente que analisa todos os valores do hemograma em conjunto, cruzando com bases de dados e conhecimento hematológico. Em segundos, o sistema poderia destacar: “Suspeita de condição mieloproliferativa, investigar presença de células imaturas” ou “Alteração discreta na série vermelha possivelmente compatível com anemia megaloblástica, sugerir dosagem de B12 e folato”. Esse tipo de insight automatizado daria ao médico de família uma capacidade muito maior de seguir pistas diagnósticas corretas. Ao invés de apenas repor ferro para toda anemia, o médico seria instigado a buscar a causa exata da anemia quando houvesse sinais atípicos, reduzindo o risco de tratar sintomas enquanto a doença de base evolui silenciosamente.

O médico da atenção básica ganha, assim, um assistente virtual especializado, que o ajuda a decidir quais casos ele mesmo pode conduzir (com alguma investigação adicional orientada) e quais realmente necessitam de encaminhamento imediato ao hematologista.

Em suma, a IA promete aumentar a resolutividade clínica na ponta, diminuindo a dependência exclusiva do especialista.

Benefícios clínicos e econômicos da triagem automatizada

Os ganhos potenciais dessa integração da IA na atenção primária são duplos: clínicos e econômico-administrativos. Do ponto de vista clínico, o benefício mais evidente é a

detecção mais precoce de doenças graves, o que salva vidas. Identificar uma leucemia ou uma síndrome mielodisplásica nas suas fases iniciais pode significar tratamentos menos agressivos e maior chance de cura. No âmbito econômico e de gestão em saúde, as vantagens são igualmente atraentes. Cada doença grave evitada ou controlada precocemente representa custos poupados em internações prolongadas, procedimentos de alta complexidade e terapias onerosas. Ou seja, investimentos em tecnologia de triagem têm retorno na forma de despesas evitadas a médio e longo prazo.

Além disso, a triagem automatizada otimiza o uso dos especialistas escassos. Com a IA filtrando casos potencialmente complexos, os hematologistas receberiam apenas os encaminhamentos realmente indicados, em vez de pacientes que poderiam ser manejados na atenção básica. Isso tornaria as filas por consulta especializada mais curtas e resolutivas. Para o SUS, isso significa melhor uso da capacidade instalada e dos recursos financeiros; para a saúde suplementar, pode significar redução de custos com procedimentos redundantes e melhoria na qualidade da assistência prestada aos beneficiários. Cabe destacar que nada disso substitui os métodos tradicionais – a IA não vem para trocar exames confirmatórios (como mielograma, biópsias) nem dispensar a avaliação humana, mas sim para funcionar como um “filtro inteligente” e um apoio à decisão. Assim, o cuidado permanece centrado no médico e no paciente, porém reforçado por uma análise tecnológica de alto nível.

Inovação para um cuidado básico mais forte

Em um país continental com demandas de saúde tão heterogêneas, empoderar o médico generalista com ferramentas de IA significa democratizar o acesso à expertise. Significa que um cidadão atendido no interior do Brasil pode ter praticamente o mesmo screening qualificado de doenças hematológicas que aquele atendido em um grande centro universitário, pois ambos terão seu hemograma “lido” com o auxílio de algoritmos treinados no conhecimento mais avançado da área. Essa equalização de oportunidades diagnósticas se traduz em equidade e eficiência. No limite, trata-se de salvar vidas que hoje se perdem por diagnósticos tardios, ao mesmo tempo em que economizamos recursos evitando procedimentos desnecessários e tratamentos de resgate onerosos. A atenção primária é a base de qualquer sistema de saúde forte; ao reforçá-la com inteligência artificial, estaremos dando um salto qualitativo e sustentável rumo a um modelo de saúde mais resolutivo, humano e financeiramente responsável.

Em síntese, transformar dados em decisões inteligentes é o próximo passo para levar a atenção primária brasileira do quantitativo ao qualitativo – menos exames desperdiçados, mais diagnósticos precoces, melhor cuidado ao paciente e uso judicioso dos recursos. É um caminho que exige visão e investimento, mas cujos dividendos clínicos e econômicos farão a jornada valer a pena.


*Raphael Saraiva é Co-fundador da HemoDoctor.

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