A Explicabilidade da IA para o Consentimento do Paciente

Por Gisele Machado Figueiredo Boselli

No cenário global atual, em que novas ferramentas de Inteligência Artificial surgem todos os dias, a necessidade em se estabelecer parâmetros de confiabilidade e segurança para essas tecnologias torna-se essencial. Apesar de parecer uma preocupação nova, já há alguns anos pesquisadores e cientistas de dados atuantes nesse campo vêm alertando sobre a urgência em se criar não apenas diretrizes globais que assegurem o desenvolvimento responsável dessas ferramentas, mas também leis que possam efetivamente prevenir ou mitigar os riscos que lhes são intrínsecos.

Estamos caminhando nessa direção. O regulamento europeu, denominado “IA Act”, entrou em vigor em agosto de 2024, alocando a ‘explicabilidade’ no centro da preocupação em relação aos sistemas de IA, especialmente àqueles que envolvem riscos, e exigindo que as decisões realizadas ou recomendadas pela tecnologia sejam explicadas de maneira clara e acessível. Por sua vez, o projeto de lei brasileiro, que está atualmente em tramitação no Congresso Nacional, também define a explicabilidade como um dos princípios para o desenvolvimento da IA confiável e segura .

O conceito de explicabilidade, que está abrangido pela ideia de transparência, exige que ela não se limite à compreensão técnica pelos desenvolvedores ou cientistas de dados, mas também se estenda aos sujeitos que vão operá-las e, eventualmente, aos destinatários finais da tecnologia. Ao considerar o uso da IA na saúde como ferramenta auxiliar nos diagnósticos médicos ou na definição de terapêuticas mais complexas, é essencial que o profissional que fará seu uso seja capaz de questionar apropriadamente sua funcionalidade e compreender suas potencialidades e limitações.

O usuário deve ter conhecimento sobre as probabilidades de viés algorítmico, que ocorre quando o modelo não é desenvolvido e testado com dados diversos e abrangentes, podendo amplificar preconceitos existentes e gerar decisões que prejudicam minorias ou pacientes com características específicas, como etnia ou condição socioeconômica. Nesses casos, a tecnologia pode levar a diagnósticos incorretos ou tratamentos inadequados, ainda que para um menor número de pacientes.

Para mitigar esses riscos, é essencial que os responsáveis pelos projetos de IA sigam diretrizes éticas e analisem cuidadosamente os modelos matemáticos e as bases de dados utilizadas, garantindo a diversidade e qualidade dos ‘inputs’. Embora seja difícil eliminar completamente os vieses, é possível minimizá-los significativamente por meio de boas práticas na escolha e na análise dos dados. Dessa forma, as decisões automatizadas poderão ser mais justas e equânimes, principalmente em cenários que impactem diretamente a saúde.

Por outro lado, quando não for possível utilizar bases de dados variadas, essa limitação deve ser apresentada de forma clara e acessível aos envolvidos no projeto, bem como aos compradores, operadores e usuários finais. Dessa forma, o médico que se utiliza de uma ferramenta com IA estando ciente de suas potencialidades e restrições, também poderá esclarecer adequadamente o paciente sobre os riscos envolvidos, permitindo-lhe consentir ou negar sua utilização.

O consentimento livre e esclarecido, que é crucial na nova dinâmica da relação médico-paciente, depende de informação clara e acessível. A ausência ou omissão de dados poderá configurar violação de deveres éticos e legais do profissional e repercutir em responsabilização, tanto no âmbito administrativo – junto ao conselho de classe – como nas esferas cível e criminal . Pode-se afirmar, com base em recentes estudos, que o aumento da judicialização na saúde reflete em parte essa nova postura do paciente que não aceita mais ser excluído das decisões em relação a sua saúde.

Isto posto, surge uma nova angústia para o médico, que se depara com mais um encargo: a obrigação de estar atualizado em relação às novas tecnologias médicas, em um momento em que lhe falta tempo inclusive para acessar e estudar toda a produção científica de sua área de especialização. Nesse sentido, o professor Genival Veloso de França, em sua paradigmática obra “Direito Médico” , reflete: “as pesadas obrigações jurídicas que surgem da evolução contemporânea são a inevitável contrapartida dos notáveis progressos da Medicina moderna”.

A boa notícia é que a lei, quando promulgada, pode vir em auxílio dos profissionais – usuários das novas tecnologias-, estabelecendo a obrigação informacional ao desenvolvedor dos dispositivos. O artigo 20, V, do referido PL 2.238/23, ao tratar dos sistemas classificados como de alto risco , prevê a “explicabilidade dos resultados dos sistemas de inteligência artificial e de medidas para disponibilizar aos operadores e potenciais impactados informações gerais sobre o funcionamento do modelo de inteligência artificial empregado, explicitando a logica e os critérios relevantes para a produção de resultados”.

Esse respaldo legal poderá apoiar o médico na seleção da melhor ferramenta e ajudá-lo a compreender como ela poderá impactar a assistência ao seu paciente, sem que, contudo, o profissional seja eximido da responsabilidade pelo seu uso. O médico mantém sua autonomia para indicar o procedimento que entender mais adequado, observando as práticas cientificamente reconhecidas, respeitada a legislação vigente e considerando o direito de autonomia do paciente.

Portanto, ao considerar os desafios e as oportunidades que a IA apresenta, torna-se imperativo que o debate sobre sua transparência e confiabilidade esteja no centro das discussões, direcionando as leis, as políticas públicas, as práticas empresariais e, principalmente, assegurando que o desenvolvimento da IA esteja em sintonia com os valores éticos que buscamos preservar, especialmente quando inserida no ecossistema da saúde. É preciso equilíbrio entre a inovação tecnológica e a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos, de modo a garantir que o progresso seja centrado no bem comum.


*Gisele Machado Figueiredo Boselli é Advogada. Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV. Especialista em Direito Médico e da Saúde pela PUC-PR. Membro da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB-SP. Associada ao Instituto Miguel Kfouri Neto – Direito Médico e da Saúde.

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