Superior Tribunal de Justiça, ANS e os cartões-desconto

Por Silvio Guidi

Está despertando enorme interesse o recente pronunciamento do Diretor-Presidente da ANS, acerca da possibilidade de a Agência regular as operadoras de cartão-desconto. Essas operadoras surgiram nos primeiros anos da década passada, momento em que o Brasil enfrentava uma crise econômica com severo impacto na saúde suplementar. Naqueles anos, em razão da crise, foi rompido o crescimento anual de quatro milhões de vidas cobertas por planos de saúde, que vigeu por uma década e alcançou cinquenta milhões de pessoas. Além disso, mais de seis milhões de pessoas deixaram o sistema suplementar, em razão de o plano de saúde derivar da relação de emprego que perderam.

Neste cenário, surgiram as clínicas populares e as plataformas de marketplace, que ofertam serviços de saúde mais simples, como consultas e exames. O público-alvo deste mercado era precisamente as pessoas que perderam seus planos de saúde, e mesmo sem emprego, tinham condição de custear certas necessidades de saúde. De lá para cá, esse mercado cresceu enormemente. Especula-se que os consumidores desses serviços já sejam mais de quarenta milhões. Por aí se entende a razão de o setor da saúde efervescer após a declaração da ANS.

A fala sobre a ampliação da competência regulatória da ANS vem após determinação do STJ para que tal ordenação ocorra (vide acórdão AgInt no AREsp n. 2.183.7040). E, do rebuliço do mercado, em razão deste prometido enquadramento, surgem duas questões: (i) a ANS tem efetivamente competência para regular as operadoras de cartão-desconto? (ii) essa regulação é benéfica ao sistema de saúde brasileiro?

Não há dúvidas quanto ao primeiro ponto. Diz-se isso, a partir da análise conjugada de três expressões que constam na Lei de criação da ANS nº 9.961/2000: (i) assistência suplementar à saúde (art. 3º da Lei da ANS); (ii) operadoras setoriais (art. 3º da Lei da ANS); (iii) operadoras de planos de assistência à saúde (v.g inc. VII, do art. 4º da Lei da ANS).

A saúde suplementar (i) não tem conceito estabelecido em Lei. Mas, é possível a definir como o setor econômico prestador (direto ou indireto) de serviços privados de saúde, que suplementa o SUS ao convencer um volume relevante de pessoas a pagar por serviços de saúde que necessitam. Dessa forma, captura demanda e permite direcionar os recursos públicos à parcela mais vulnerável da população, que não reúne condições de escolha e, por isso, demanda exclusivamente do sistema público.

Operadoras setoriais (ii) e operadoras de planos de assistência à saúde (iii) representam respectivamente gênero e espécie. As primeiras são agentes que atuam no setor suplementar da saúde, ao passo que as segundas são as que ofertam um produto específico no setor suplementar, qual seja o plano de assistência à saúde (plano de saúde). Diante dessa análise, fica fácil perceber que se a ANS tem competência para regular as operadoras setoriais (setor da saúde suplementar), está sob sua responsabilidade a regulação das operadoras de cartões-desconto. Afinal, estão convencendo um número significativo de pessoas a se tornarem consumidores de serviços privados de saúde, mesmo tendo a alternativa gratuita do SUS em sua esfera de direitos.

Questão outra é saber se dessa regulação haverá benefício à sociedade. Não se pode ignorar que as operadoras de cartão-desconto, até então não reguladas, têm apresentado serviço relevante à população brasileira. O número de clientes é muito expressivo e, ao contrário das operadoras de planos de saúde, não estão imersas em uma hiperjudicialização. Ou seja, aparentemente, há satisfação por parte do consumidor. Esses fatos legitimam a dúvida se a regulação é ou não pertinente.

Mas, uma vez reconhecida a competência, não pode a ANS simplesmente não regular. Dito isso, o que se espera da Agência é parcimônia. Não será útil uma regulação aos moldes dos planos de saúde. Haveria um encarecimento substancial dos produtos ofertados pelas operadoras de cartão-desconto, com risco de diminuir a demanda pública que capturam.

O ideal é que, ao menos por ora, a ANS se valha do seu poder regulamentar para fazer uma radiografia do setor. Quantas pessoas efetivamente contratam cartões-desconto? Quais serviços compõem esse produto? Qual é o perfil epidemiológico dessa carteira? Essas são algumas de várias questões a serem descortinadas pela ANS, antes de se pensar em uma regulação propriamente dita, a qual significará que a Agência passará a condicionar os caminhos a serem trilhados por essas operadoras de cartões-desconto.

Ainda, não se pode ignorar o potencial benefício que essa regulação poderá trazer às operadoras de planos de saúde. Por exemplo, a regulação dos cartões-desconto poderá a ajudar a ANS a entender o porquê de o mercado de planos de saúde estar cada vez concentrado e desacelerado. Poderá ainda viabilizar eventuais sinergias entre esses perfis distintos de operadores (cartões-desconto + planos de saúde), apresentando soluções mais sofisticadas, eficientes e interessantes ao consumidor.

Em resumo, a regulação há de beneficiar a sociedade, de modo a não ser obstáculo ao acesso aos cartões-desconto. Deve qualificar a captura de demandas de saúde, colaborando com a viabilização do acesso, sempre priorizando a prevenção e a proteção da saúde. Afinal, e a pujança dos cartões-desconto é prova disso, saúde é muito mais do que medicamento e hospital.


*Silvio Guidi é Mestre em Direito Administrativo pela PUCSP e Sócio em SPLAW Advogados.

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