SXSW 2024: O uso da Inteligência Artificial no contexto clínico

Por Eduardo Moura

O SXSW 2024 trouxe uma trilha de palestras dedicadas a cuidados de saúde, e, de longe, o assunto mais comentado nas temáticas de palestras e painéis de discussão foi o uso da inteligência artificial no contexto clínico.

Sabemos que um dos maiores potenciais de disrupção da IA é na indústria de saúde, e dezenas de exemplos reais e aplicáveis atualmente foram citados no evento. Trago os principais pontos de aplicabilidade da IA e seus desafios, conforme discutido pelos participantes de três painéis da trilha de cuidados em saúde: “AI, Healthcare, and the strange future of Medicine”; “Will AI replace Healthcare Workers? No, but it will turn them into Tech Workers”; e “Clinical AI is Not Just Any AI”.

1. Uso de inteligência artificial na tomada de decisão clínica

A IA tem um grande potencial ajudando médicos a tomarem decisões mais seguras, prevenindo erros diagnósticos ou solicitação indiscriminada de exame, porém, apesar dessa potencialidade, especialistas destacaram suas limitações e o caminho para o desenvolvimento de modelos mais confiáveis.

Como o próprio nome de um dos painéis descrevia, uma IA clínica não pode ser qualquer IA, talvez em resposta ao crescente uso do ChatGPT por leigos para diagnóstico de doenças. Sendo assim, os panelistas indicaram quais os desafios que precisariam ser superados para o uso da IA no contexto clínico:

· Responsabilização (Accountability): Um grave problema é que todo erro na cadeia de saúde causa consequências que envolvem contextos extremamente sensíveis à saúde do paciente. Um ponto que ainda não está bem definido é: quem responde por erros eventualmente causados pela IA?

· Transparência e Explicabilidade: Os sistemas de IA devem ser capazes de explicar suas decisões e recomendações de maneira que profissionais de saúde e pacientes possam entender, ou seja, os sistemas precisam ser auditáveis, e o modelo de “caixa preta” dos LLM (large language models) atuais não permite isso.

· Determinismo: Os modelos de IA precisam fornecer resultados consistentes, ou seja, uma mesma pergunta feita de duas maneiras diferentes precisa dar o mesmo resultado. Os modelos gerais atuais não garantem isso.

· Contextualização: É fundamental que IA compreenda a jornada do paciente e o contexto médico, ao invés de interpretar dados como uma folha de papel preenchida por caracteres.

· Falta de Empatia: Uma lacuna significativa da IA é a incapacidade de ter empatia e compreender plenamente as necessidades humanas, algo fundamental na relação médico-paciente.

· Conciliação de informações divergentes: A IA clínica precisa ser capaz de analisar informações que pareçam contraditórias, a exemplo do que os médicos lidam diariamente.

O caminho para superar estes desafios não está tão distante. Embora não seja dada uma “fórmula de bolo”, é claro que alguns princípios precisarão ser aplicados na IA para garantir a superação destes obstáculos.

Um ponto importante é trazer para a IA uma forma de raciocínio clínico semelhante ao humano e extremamente contextualizado. O raciocínio humano é muitas vezes descrito como um processo de dois sistemas: intuitivo e lógico (Sistema 1 e Sistema 2, respectivamente). Para ser efetiva, uma IA na clínica deve ser capaz de integrar a habilidade de reconhecimento de padrões (Sistema 1) com a aplicação de regras lógicas (Sistema 2), utilizando ambos, conforme necessário. Ou seja, além dos algoritmos de deep learning que são extremamente eficientes no reconhecimento de padrões, a IA também precisa incorporar componentes simbólicos, regras lógicas pré-estabelecidas por experts nos respectivos assuntos.

A combinação dessas duas abordagens pode tornar sistemas de IA mais seguros, explicáveis, contextualizados e melhor capazes de auxiliar o médico, ao invés de substituí-los. O grande potencial do uso da IA para decisão clínica é em oferecer uma inteligência aumentada aos profissionais, tornando-os capazes de resolver problemas mais complexos.

2. Uso de IA pelo paciente

A IA generativa também apresenta ampla oportunidade de aplicação na interface com o paciente. Alguns dos potenciais usos envolvem:

  • Aconselhamento médico para casos simples;
  • Tradução da linguagem médico-científica para uma linguagem mais acessível e melhor assimilável pelo paciente;
  • Assistência no lembrete de aderência terapêutica a medicamentos e cuidados em saúde.

A utilização da IA que estará nos consultórios médicos é o uso como assistente virtual pelo paciente, durante a consulta médica, contexto este que o médico precisa estar preparado para enfrentar num futuro bem imediato.

3.  Consequências no mercado de trabalho

Como toda tecnologia disruptiva, a inteligência artificial trouxe um cenário de muita incerteza no mercado de trabalho, e na saúde não foi diferente. As lideranças participantes do painel “Will AI replace Healthcare Workers? No, but it will turn them into Tech Workers”, no entanto, destacam que o impacto no mercado de trabalho em saúde será menor (possivelmente inexistente) no que se refere a quantidade de postos de trabalho. Dado comprobatório do baixo impacto em quantidade de postos de trabalho é que, atualmente, 6 dos 10 campos profissionais de maior aumento de demanda global são da área de saúde.

O impacto, no entanto, será profundo, no que refere a perfil profissional e habilidades. Segundo pesquisa do LinkedIn, 28% das habilidades exigidas para cargos no setor de saúde mudaram desde 2015, e esta é uma tendência que deve se intensificar à medida que as novas tecnologias sejam incorporadas no fluxo de trabalho de hospitais e clínicas.

Conhecimento em dados e entendimento de como melhor usar a IA serão fundamentais para esse novo perfil profissional. Soft skills relacionados à capacidade interpessoal, empatia e atenção também serão fundamentais, pois, diante de um crescente uso de tecnologia nos processos de cuidado, os profissionais estarão muito mais envolvidos na interface humana junto ao paciente para garantir o sucesso dos protocolos terapêuticos e acompanhamento do paciente. Movimento importante deve ser feito, por exemplo, por faculdades de medicina e programas de residência médica no desenvolvimento de um currículo que aborde o uso da IA na prática clínica.

No contexto brasileiro, em que a digitalização de prontuários médicos e a interoperabilidade de dados de saúde ainda estão incipientes, lideranças de saúde precisam pensar em alguns passos antes de tomar ações mais práticas do uso de IA. É necessário começar entendendo e estruturando melhor seus dados. A partir disso, definir perguntas claras e identificar casos de uso reais para orientar o desenvolvimento dessas soluções.

Uma das aplicações mais imediatas da IA no contexto clínico é auxiliar no preenchimento de prontuários eletrônicos, melhorando a eficiência e a acurácia dos dados registrados. São muitas as oportunidades e é fundamental que o médico e profissional de saúde estejam envolvidos nestas iniciativas, garantindo que a nova tecnologia se encaixe dentro do fluxo de trabalho e seja efetivamente adotada para o benefício do paciente e do sistema de saúde.


*Eduardo Moura é Médico, Co-fundador do Whitebook e Diretor de Pesquisa da Afya.

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