Medicina sob pressão: os desafios da judicialização da medicina

Por Marcela Freire

A relação entre a Medicina e o Direito vem aumentando de forma exponencial, especialmente no contexto da crescente judicialização da medicina. De acordo com os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no ano de 2017, os médicos enfrentavam 3 ações judiciais por hora, totalizando mais de 70 processos por dia. Há cerca de 15 anos atrás a proporção de médicos processados em relação aos não processados era de 1 para 20; atualmente, essa relação mudou consideravelmente, com 1 médico processado para cada 5 médicos não processados.

A judicialização da medicina, que consiste no aumento do número de demandas judiciais relacionadas à relação médico-paciente, desencadeou o surgimento da medicina defensiva, que é uma resposta dos profissionais de saúde ao medo de enfrentar processos judiciais.

Muitos estudiosos buscam compreender e justificar a causa desse aumento de litígios e suas consequências na relação da prática médica e na relação médico – paciente.

O contraste entre a imagem do médico antigamente, que era visto como uma figura quase divina, e a imagem do médico da atualidade, onde sua imagem é muitas vezes questionada, revela uma mudança significativa na dinâmica da relação médico-paciente e na percepção pública da profissão médica.

Antigamente, na era da medicina positivista, os médicos eram vistos como autoridades, salvadores, cujas ações eram consideradas infalíveis. Naquela época, o médico, tão somente ele, detinha o poder da decisão quanto ao tratamento médico a ser realizado em seu paciente. Era a chamada “medicina verticalizada”, de modo que a decisão se dava do médico para o paciente, de um ser “superior” – a nível técnico – para um ser inferior – também a nível técnico.

No entanto, com a evolução da sociedade e o acesso à informação, essa dinâmica foi se transformando. A medicina que antes era verticalizada, foi ficando horizontal, isto é, médicos e pacientes em grau de igualdade. Os pacientes passaram a ter voz e autonomia em relação aos seus tratamentos.

A imagem do médico como um ser infalível foi substituída por uma compreensão mais realista. Hoje os pacientes reconhecem as limitações humanas do médico e compreenderem que sua prática médica está sujeita à falhas.

Quanto mais acesso à informação o paciente tem, mais questionador ele é, isso faz com que a sua postura nos consultórios médicos seja mais incisiva. Hoje é comum que um paciente pesquise seus sintomas no Google antes da consulta médica e chegue ao consultório com um diagnóstico em mente, sugestões de exames e até mesmo medicamentos, o que faz com que ele espere que o médico siga de acordo com o que encontraram na internet. Certo é que muitos médicos ainda não conseguiram se adaptar à essa realidade, o que faz com que essa relação paciente- médico seja fragilizada, o que pode redundar na judicialização da medicina.

Outro fator que é considerado como causa da judicialização da medicina pelos estudiosos é a super especialização médica, que é uma característica marcante da medicina contemporânea. Antigamente, no período da medicina verticalizada, a figura do médico de família era predominante, com profissionais capacitados para atender à diversas necessidades de saúde de uma mesma família. A relação entre o médico da família e os pacientes era pautada por muita confiança. Os pacientes daquela época não questionava os médicos, qualquer dano ou intercorrência era muitas vezes atribuído à vontade divina, aceito como parte do destino.

Os médicos, em contrapartida, romperam um pouco dessa confiança a partir do momento em que começaram a se especializar em áreas médicas. Enquanto antigamente predominava o médico generalista, hoje em dia é comum a especialização em áreas específicas da medicina, como cardiologia, dermatologia, otorrinolaringologia e ortopedia, entre outras. Isso resultou em um estreitamento do foco de atuação de cada médico, fazendo com que o médico perca a visão do paciente como um ser humano completo, e o enxergue por partes, atentando-se aos aspectos específicos da doença.

À medida em que o diálogo diminui e a relação entre médico e paciente se torna mais superficial, a confiança mútua enfraquece, criando um ambiente propício para a judicialização.

Nesse contexto de enfraquecimento da relação médico- paciente e do aumento das demandas em face de médicos, surge a prática da medicina defensiva, que é uma consequência direta da judicialização da medicina.

A medicina defensiva envolve a adoção de medidas excessivamente cautelosas por parte dos médicos para evitar processos judiciais. Um exemplo disso é quando o médico consegue fechar um diagnóstico a partir do exame físico/ clínico e acaba por solicitar exames de imagem porquê o paciente exige que aquele diagnóstico seja feito através da análise de exames e não somente da análise clínica. Isso é, o médico solicita exames pra confirmar um diagnóstico apenas para produzir provas documental, a fim de evitar que o paciente diga posteriormente que o diagnóstico estava equivocado, e a fim de lhe resguardar de um possível processo ético- profissional ou judicial por negligência, por exemplo.

A medicina defensiva divide-se em medicina defensiva positiva, que é quando o médico solicita exames à pedido do paciente, a fim de evitar problemas judiciais e administrativos futuros, exclusivamente com a finalidade de satisfazer a vontade do paciente e se resguardar, comprovando que à época aquela era a única patologia possível de ser diagnosticada.

A medicina defensiva negativa trata das circunstâncias onde é possível uma intervenção cirúrgica, mas o médico, em virtude do alto risco de morte durante a cirurgia, acaba optando pelo óbito em decorrência da doença subjacente, a fim de não assumir a responsabilidade de que aquele paciente venha à óbito durante o procedimento cirúrgico.

A prática da medicina defensiva é vedada tanto pelo Conselho Federal de Medicina quanto pelo judiciário, uma vez que contribui para o aumento dos custos do sistema de saúde, dos planos de saúde e do próprio paciente, devido à realização de exames desnecessários. No entanto, os médicos muitas vezes se encontram em uma posição vulnerável, especialmente diante da crescente judicialização da medicina.

Diante desse cenário de aumento exponencial da judicialização da medicina e da consequente prática da medicina defensiva, é crucial que os médicos busquem estratégias para lidar diariamente com esses desafios.

O fortalecimento da relação médico-paciente por meio da escuta ativa, da atenção dedicada e do estabelecimento de um diálogo aberto e transparente com o paciente, é fundamental. Além disso, a elaboração e o uso adequado de documentação médica completa e precisa, juntamente com o registro detalhado em prontuário, são medidas essenciais para mitigar os riscos associados à judicialização.

Nesse contexto, é imperativo que os médicos estejam familiarizados com o direito médico preventivo, buscando constantemente atualizações e capacitação nessa área. Ao adotar essas práticas, os profissionais de saúde podem contribuir significativamente para a redução da judicialização da medicina, promovendo uma prática médica mais ética, responsável e centrada no paciente.


*Marcela Freire é Advogada atuante em Direito Médico e da Saúde, Vice- Presidente da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/ Duque de Caxias.

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