Com aumento acelerado de casos e mortalidade, especialistas alertam para desigualdades, gargalos no diagnóstico e a urgência de políticas públicas sustentáveis
O número de casos de câncer e a mortalidade pela doença na América Latina e no Caribe devem aumentar, respectivamente, 83% e 98,5% até 2050, segundo projeção da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc), da Organização Mundial da Saúde. A informação foi trazida pela diretora da agência, a brasileira Elizabete Weiderpass, durante o seminário internacional Controle do Câncer no Século XXI: Desafios Globais e Soluções Locais, promovido pelo Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz, em parceria com o Instituto Nacional de Câncer (Inca), em comemoração ao Dia Nacional de Combate ao Câncer (27/11).
Globalmente, o aumento do número de casos de câncer será de 77%, passando de 20 milhões em 2022 para 35,3 milhões em 2050. De acordo com Weiderpass, países de baixa e média rendas serão os mais afetados. “Esses países são os que estão mais despreparados para enfrentar o tsunami de casos que vai, com certeza, acontecer nessas regiões”, disse.
Em relação à mortalidade, os números são ainda mais impressionantes. Em termos globais, o aumento previsto é de 85% até 2050, em comparação com 2022, passando de 10 milhões de mortes anuais por câncer para 18,5 milhões. E, novamente, países de baixa e média rendas serão os mais atingidos. “O acesso ao diagnóstico e ao tratamento adequado e acessível de forma equânime será um dos grandes desafios nas próximas décadas”, salientou.
Se as tendências atuais persistirem, o número de casos e mortes por câncer de mama deve aumentar 40% até 2050, com países de baixo Índice de Desenvolvimento Humano sofrendo mais. Um dos aspectos trazidos pela diretora da Iarc foi a necessidade de tratamento ambulatorial do câncer de mama, pois, segundo ela, os sistemas de saúde não têm como tratar todos os casos em ambiente hospitalar.
No entanto, a pesquisadora destacou o potencial e o impacto da prevenção, que podem fazer toda a diferença nessas previsões. Ela abordou, por exemplo, a proporção de casos de câncer atribuíveis a determinados fatores de risco, como o consumo de bebidas alcoólicas: em 2020, foram 740 mil novos casos no mundo diretamente associados à ingestão de álcool. “Seria muito importante a conscientização da comunidade científica, da comunidade médica e da população em geral sobre a participação do álcool, mesmo em quantidades modestas, como causa de câncer”, alertou.
Prevenção, acesso e novas tecnologias
No evento, o ministro da saúde, Alexandre Padilha, destacou a necessidade de políticas de prevenção, ampliação do acesso a novas tecnologias e fortalecimento da cooperação internacional no enfrentamento da doença.
“O impacto epidemiológico do câncer existe em todas as regiões do mundo e não é um problema apenas dos países desenvolvidos do hemisfério Norte. Por isso, precisamos nos mobilizar fortemente nessa agenda global para enfrentar dois desafios que exigem cooperação e articulação internacional. O primeiro é o acesso às novas tecnologias, que acaba ampliando desigualdades, já que muitos países ainda não conseguem incorporá-las. O segundo é o enfrentamento aos produtos nocivos à saúde diretamente relacionados ao câncer, como o tabagismo, o consumo de ultraprocessados e a relação com a obesidade”, disse Padilha.
Roberto Gil, diretor-geral do Inca
O diretor-geral do Instituto Nacional de Câncer (Inca/MS), Roberto Gil, afirmou que o câncer tende a se tornar, em breve, a principal causa de mortalidade no Brasil. Ele destacou fatores como o envelhecimento da população e a baixa adesão a mudanças de comportamento relacionadas aos fatores de risco.
Já o presidente da Fiocruz, Mario Moreira, ressaltou que o câncer é um tema de relevância nacional e defendeu que a instituição passe a tratá-lo como uma de suas prioridades estratégicas. Ele também considerou importante informar a população sobre comportamentos que aumentam o risco de desenvolver a doença. “É importante entender que o câncer é fruto de uma determinação social. Não temos como escapar disso. Ainda que nosso desafio envolva ciência e políticas públicas, precisamos reconhecer que, em um país desigual como o Brasil, há um esforço adicional para construir políticas inclusivas. Esse deve ser um compromisso presente em todas as agendas de saúde pública, especialmente no combate e controle do câncer”, disse.
Para José Carvalheira, diretor do Departamento de Atenção ao Câncer da Secretaria de Atenção Especializada à Saúde do Ministério da Saúde, a doença é a “expressão mais dura da desigualdade”. Ele citou algumas ações adotadas pelo governo para lidar com a doença, como a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer. “Saímos daquela carcaça hospitalocêntrica para olhar todos os pontos da rede e tentar mudar. Nosso lema é que o tempo é vida, e estamos correndo atrás disso para mudar o diagnóstico precoce”, afirmou.
Luiz Antonio Santini, ex-diretor do Inca e coordenador do seminário, alertou para os impactos das desigualdades socioeconômicas na saúde, mas destacou que esse quadro pode ser transformado. “A Política Nacional de Controle do Câncer não diz respeito apenas à nomenclatura, mas também à estratégia. Hoje, sabemos que a desigualdade no Brasil e no mundo é marcada por dois fatores contraditórios: a falta e o excesso. Há excesso de gastos com tratamentos desnecessários ou além do indicado. Ao mesmo tempo, falta acesso aos cuidados básicos, ao diagnóstico precoce e à prevenção. Essa é uma marca do cenário do câncer no mundo, sobretudo em países menos desenvolvidos. Mas esse quadro pode ser transformado com esforço, cooperação, conhecimento e mobilização da sociedade”, afirmou.
Populações negra e LGBTQIAPN+ são mais desfavorecidas
O painel reuniu Mariana Emerenciano (Inca/MS) e Jessé Lopes (Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica – Sboc) e discutiu caminhos para ampliar o acesso e reduzir desigualdades raciais e de gênero. O objetivo foi reforçar como garantir que diferentes perfis de pacientes tenham condições reais de receber diagnóstico e tratamento adequados.
Cerca de 20% das mulheres negras relataram ter sofrido discriminação racial durante o tratamento de câncer de mama, enquanto estudos qualitativos em Belo Horizonte revelam que a orientação sexual é frequentemente ignorada nas consultas.
Os dados foram compartilhados pelo oncologista Jessé Lopes Silva, coordenador do Comitê de Diversidade da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (Sboc), no painel “A Importância da Diversidade na Oncologia”, na abertura do seminário internacional Controle do Câncer no Século XXI: Desafios Globais e Soluções Locais, promovido pelo Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz, nos dias 27 e 28, em comemoração ao Dia Nacional de Combate ao Câncer. O evento reúne pesquisadores brasileiros e estrangeiros, além de profissionais e gestores de saúde, para discutir avanços, fragilidades e perspectivas no enfrentamento do câncer.
Para Jessé Lopes, em relação “à população LGBTQIAPN+ [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros/Travestis, Queer, Intersexo, Assexuais, Pansexuais e Não binários]”, isso acaba “gerando uma ‘homofobia institucional’ pelo silêncio”.
Ele mostrou ainda que, quanto à população negra, diferentes pesquisas constatam que esta é vítima de diagnósticos em estádios (fases da gravidade de uma doença) mais avançados, tem início de tratamento mais atrasado, maior chance de receber tratamentos fora do padrão de guidelines (recomendações desenvolvidas de forma sistemática) e desfechos de sobrevida piores.
“A gente parte de uma sociedade que estruturalmente é moldada pela discriminação e marginalização de alguns grupos; a seguir, você tem as instituições que se regulamentam justamente para manter essa estrutura rígida de iniquidades, que historicamente foi passada de geração em geração”, explicou Jessé Lopes. Iniquidades de ecossistema, de segurança pública etc. levam à maior exposição aos fatores propícios ao desenvolvimento de cânceres. O tema da iniquidade é debatido no Dia Nacional de Combate ao Câncer porque a doença “não afeta todos de maneira igualitária. Hoje, temos evidências [científicas] claras de que essas disparidades raciais, de gênero e socioeconômicas impactam a sobrevida”, detalhou ele.
“A questão é ‘letrar’ [capacidade de usar e entender uma determinada linguagem, sistema de símbolos ou prática social de forma competente e crítica dentro de um contexto específico], é trabalhar as competências culturais, é trazer o respeito na relação médico-paciente, melhorar a comunicação e também valorizar a identidade do paciente”, defendeu o oncologista.
Apenas 1% dos oncologistas no Brasil são negros e apenas 9% se consideram de gênero diverso.
Futuro
Richard Sullivan, diretor do Institute for Cancer Policy e co-diretor do Centre for Conflict & Health Research do King’s College, de Londres, apontou os desafios econômicos para lidar com o câncer nos próximos anos e indicou caminhos que podem ser seguidos.
“Políticas econômicas para o câncer ao redor do mundo estão colapsando. E, ao mesmo tempo, os países estão tendo que lidar com pressões enormes, porque temos novas tecnologias surgindo e demandas por profissionais de atenção à saúde. Apesar do avanço no número de médicos no Brasil, será preciso praticamente dobrar o número total de profissionais na próxima década para alcançar os objetivos. E, ao mesmo tempo, há novas tecnologias, como novos testes de detecção de câncer e novas técnicas de radioterapia. Isso cria um enorme desafio fiscal para os países. E o Brasil é um dos países que estarão no olho do furacão”, afirmou.
Ações nacionais para prevenção, diagnóstico e tratamento do câncer
Para ampliar a prevenção, o diagnóstico precoce e o acesso ao tratamento, o Ministério da Saúde lançou e implementou neste ano uma série de políticas e ações para expandir o cuidado da pessoa com câncer.
Uma das iniciativas foi a ampliação do acesso à mamografia no SUS. Agora, mulheres de 40 a 49 anos, mesmo sem sinais ou sintomas, podem realizar o exame na rede pública — antes, a recomendação era para o público de 50 a 69 anos. A idade-limite também foi ampliada de 69 para 74 anos. A medida visa garantir a detecção precoce e aumentar as chances de cura.
Ministro da Saúde, Alexandre Padilha lança o Super Centro para Diagnóstico do Câncer
O tratamento oncológico é uma das prioridades do Agora Tem Especialistas, programa do governo federal para ampliar o acesso da população ao atendimento especializado. Por meio de parcerias com hospitais privados, o programa passa a ofertar serviços de alta complexidade e cuidados oncológicos a pacientes do SUS. Além disso, carretas móveis levaram assistência a 22 estados em outubro, com oferta de exames e consultas. O programa também entregou 13 aceleradores lineares em quatro estados; a expectativa é entregar 121 até o fim de 2026.
Outro avanço foi a criação de um auxílio exclusivo para pacientes que precisam percorrer grandes distâncias para realizar radioterapia. O benefício vai custear o transporte, a alimentação e a hospedagem de pacientes e acompanhantes. Serão R$ 150 para refeições e hospedagem e R$ 150 por trajeto.
Para expandir a proteção entre adolescentes contra o HPV, o Ministério também implementou a estratégia de resgate vacinal até dezembro para jovens de 15 a 19 anos que ainda não se vacinaram. A vacina contra o HPV, em dose única, é fundamental na prevenção de cânceres de colo do útero, vulva, pênis e de cabeça e pescoço.
Novas tecnologias
A rede pública passou a ofertar o teste de biologia molecular DNA-HPV, uma tecnologia inovadora e 100% nacional para detectar o câncer de colo do útero. O novo método detecta 14 genótipos do papilomavírus humano e identifica a presença do vírus no organismo antes da ocorrência de lesões ou do câncer em estágios iniciais. Ele substituirá o Papanicolau e está sendo implementado de forma gradativa em 12 estados brasileiros.
Para reforçar o tratamento do câncer de mama, o Ministério da Saúde recebeu o primeiro lote do Trastuzumabe Entansina, medicamento de última geração para o tratamento do câncer de mama HER2-positivo, uma das formas mais agressivas da doença. Ao todo, serão quatro lotes do medicamento, com entregas previstas para dezembro de 2025, março e julho de 2026.
Super Centro para Diagnóstico de Câncer
Com foco em tecnologia e agilidade, o Ministério da Saúde lançou o Super Centro para Diagnóstico de Câncer. Com o uso de tecnologia de ponta, a unidade pretende reduzir de 25 para cinco dias o tempo para emissão do parecer médico aos pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS). Iniciativa do Agora Tem Especialistas — programa do governo que tem a oncologia como uma de suas áreas prioritárias —, o novo centro iniciou as operações em julho, em uma rede nacional integrada com foco em telemedicina e capacidade para realizar até mil laudos por dia e 400 mil por ano. Para isso, a nova estrutura conta com o uso de telepatologia, telelaudos e teleconsultoria, que, juntos, vão otimizar a jornada do paciente.
O Super Centro poderá realizar mais da metade dos exames necessários para o diagnóstico de câncer no Brasil. Com a participação do Instituto Nacional de Câncer (Inca) e do A.C.Camargo Cancer Center, ambos referência no tratamento oncológico, a nova estrutura ampliará, no SUS, a capacidade diagnóstica em anatomia patológica. Isso será viabilizado pela qualificação de laboratórios, apoio à decisão clínica e diagnóstica e uso da telepatologia.
Segundo Padilha, o programa Agora Tem Especialistas vai direcionar cerca de R$ 126 milhões para o Super Centro Brasil de Diagnóstico para o Câncer. “Vamos fazer a maior mobilização nacional da estrutura pública e privada nos centros de excelência para reduzir o tempo de espera”, conclui.
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