Tão logo a emergência em saúde pública causada pelo SARS-CoV-2 foi declarada no Brasil, o Ministério da Saúde, por meio da Portaria nº 467/2020, autorizou que as consultas médicas assumissem o formato virtual, bem como que as receitas médicas fossem emitidas em meio eletrônico.
Na época, entretanto, a Lei nº 5.991/73 exigia que as receitas médicas fossem escritas à tinta, o que tornava questionável a legalidade da emissão das mesmas no formato eletrônico, uma vez que um ato do Ministério da Saúde não poderia dispor de forma contrária à lei.
Diante da relevância do tema para a saúde pública, o governo federal, por meio da Medida Provisória nº 983/2020, posteriormente convertida na Lei nº 14.063/2020, alterou a Lei nº 5.991/73 para excluir do texto legal a necessidade de as receitas médicas serem “escritas à tinta”. Consequentemente, elas puderam assumir o formato eletrônico, sem riscos de questionamento sobre a sua legalidade, mesmo após encerrado o estado de emergência em saúde pública.
Nesse novo ambiente regulatório, alguns requisitos mínimos de validade foram impostos para as receitas médicas emitidas em formato eletrônico, tal como a necessidade de serem assinadas pelo profissional prescritor por meio dos seguintes mecanismos:
- certificado emitido no âmbito da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileiras (ICP-Brasil), instituída e regulada pela Medida Provisória nº 2200-2/2001, com o objetivo de assegurar a autenticidade, integridade e validade jurídica de documentos produzidos em forma eletrônica. Esse tipo de assinatura é denominado “Assinatura Qualificada”, ou
- por outro meio de comprovação da autoria e da integridade de documentos em forma eletrônica, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento, e (i) estar associado ao signatário de maneira unívoca, (ii) utilizar dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo, e (iii) estar relacionado aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior seja detectável. Esse tipo de assinatura é denominado “Assinatura Avançada”.
A Lei nº 14.063/2020 exigiu que as receitas em formato eletrônico para medicamentos sujeitos a controle especial, nos termos da Portaria nº 344/98 do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (Portaria 344), fossem emitidas com a Assinatura Qualificada, exceto no caso de ambiente interno hospitalar, em que o uso da Assinatura Avançada foi expressamente autorizado. Por receita entende-se a prescrição escrita de medicamento, contendo orientação de uso para o paciente, efetuada por profissional legalmente habilitado, quer seja de formulação magistral, quer seja de produto industrializado.
Os medicamentos sujeitos a controle especial são segmentados em diferentes categorias, conforme o tipo de substância, previstas no Anexo I à Portaria 344. A dispensação desses medicamentos, além de estar condicionada à Receita, requer também a apresentação da Notificação da Receita, documento padronizado destinado a notificar a prescrição de tais medicamentos.
Há formalidades a serem observadas na Notificação de Receita, que variam conforme a natureza da substância:
Categoria | Portaria nº 3448 (Anexo I) | Forma da Notificação de Receita | Cor |
Entorpecentes | A1 e A2 | Notificação de Receita A | Amarela |
Psicotrópicos | A3 |
B1 e B2 | Notificação de Receita B | Azul |
Diversas | C1 | Receita de Controle Especial | — |
Retinóicos | C2 | Notificação de Receita Especial | Branca |
Imunosupressores | C3 |
Anabolizantes | C5 | Receita de Controle Especial | — |
Os antimicrobianos também estão sujeitos à Receita de Controle Especial, conforme Resolução RDC nº 471/2021.
No caso das Notificações de Receita A e B e da Notificação de Receita Especial, a Portaria 344 impõe um formato específico a ser observado, qual seja, devem ser emitidas em talonário fornecido pela autoridade sanitária ou impressas em talonário com numeração fornecida pela mesma, conforme o caso.
Assim, apesar de a Receita dos medicamentos que contenham as substâncias das listas A1 e A2 (entorpecentes), A3, B1 e B2 (psicotrópicos), C2 (retinóticos) e C3 (imunossupressores) da Portaria 344 poder ser emitida em formato eletrônico, a Notificação de Receita ainda deve assumir forma física, até que seja editada uma norma ou regulamento que estabeleça os parâmetros para a emissão dos talonários das Notificações de Receita A e B e da Notificação de Receita Especial na forma eletrônica.
No caso dos medicamentos que contêm as substâncias das listas C1 (diversas) e C5 (anabolizantes) da Portaria 344, a Portaria 344 não impôs forma específica a ser observada para a Receita de Controle Especial, assim como a legislação de antibióticos. Isso faz com que tanto a Receita como a Notificação de Receita desses produtos possam assumir o formato eletrônico.
Além dos requisitos supracitados, as prescrições médicas, em meio físico ou eletrônico, devem observar critérios de autenticidade e integridade, tais como legibilidade, indicação de nomenclatura oficial, volume e modo de uso e identificação de dados do paciente e do profissional prescritor.
É importante ressaltar que a Lei nº 14.063/2020 outorgou à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e ao Ministro de Estado da Saúde, conforme suas respectivas competências, poderes para estabelecer requisitos adicionais – mas nunca contrários – em relação à emissão de receitas médicas em formato eletrônico.
A Anvisa, por meio de Nota Técnica, já reconheceu expressamente a possibilidade de as Receitas de Controle Especial e as receitas de antimicrobianos assumirem o formato digital, desde que a farmácia ou drogaria tenha recursos para consultar o documento original eletrônico.
Do ponto de vista ético, no fim de 2021, o Conselho Federal de Medicina (CFM), por meio da Resolução nº 2299/2021, regulamentou a emissão dos documentos médicos eletrônicos, incluindo as receitas médicas.
Além de dispor sobre as informações que devem constar das receitas médicas produzidas em formato eletrônico, a norma impôs regras para a proteção dos dados e informações dos pacientes e parâmetros mínimos de segurança.
A Resolução do CFM também impôs à plataforma tecnológica que gera a receita em meio eletrônico as seguintes responsabilidades: (i) ser inscrita no Conselho Federal de Medicina da sua sede e possuir diretor técnico médico inscrito no CFM; e (ii) garantir que somente médicos inscritos no conselho profissional para o exercício regular da medicina utilizem a plataforma ou o portal de emissão de receitas médicas em formato eletrônico.
A norma do CFM veda expressamente que médicos e empresas que emitem documentos eletrônicos indiquem e/ou direcionem suas prescrições a estabelecimentos farmacêuticos específicos, o que prejudica a existência de um sistema integrado entre profissionais prescritores e dispensadores — sistema que poderia auxiliar o acesso dos pacientes a determinados medicamentos.
Verifica-se, portanto, que atualmente o Brasil possui um ambiente robusto e seguro do ponto de vista jurídico e ético para o uso de receitas médicas em formato digital para a prescrição de medicamentos, capaz de garantir a autenticidade e a integridade das prescrições emitidas por meio eletrônico e reduzir os riscos de adulteração e fraude. A regulamentação ainda precisa avançar para as Notificações de Receita de alguns medicamentos que contenham substâncias controladas. Diante dos inúmeros benefícios que essa facilidade tecnológica pode proporcionar, espera-se que o uso desse recurso de prescrição seja ampliado de forma a otimizar e gerar maior eficiência para o sistema.
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*Camila Martino Parise é consultora da área de Life Sciences & Healthcare do escritório Pinheiro Neto Advogados.
*Nicole Recchi Aun é associada sênior da área de Life Sciences & Healthcare do escritório Pinheiro Neto Advogados.