Cenário

Não é cedo demais para começar a pensar na próxima pandemia

O mundo tem uma grande oportunidade para transformar as difíceis lições dessa pandemia em um futuro mais saudável e igualitário para todos.

Por Bill Gates Co-presidente da Fundação Bill & Melinda Gates

Uma das perguntas que as pes­soas mais fazem para mim é: “Quando você acha que o mun­do voltará ao normal?”. Enten­do o porquê. Todos queremos que as coisas voltem a ser como eram antes da Covid-19. Mas há uma área que espero que nunca volte a ser o que era: a nossa condescendência para com as pandemias. A triste realidade é que a Covid-19 pode não ser a última pandemia. Não sabemos quando a próxima acontecerá, ou nem mesmo se será uma gripe, um coronavírus, ou alguma nova doença desconhecida. Mas o que sabemos é que não podemos mais nos dar ao luxo de sermos pegos desprevenidos outra vez. A ameaça da próxima pandemia sempre estará à espreita — a menos que o mundo aja para evitá-la.

A boa notícia é que podemos nos adiantar em re­lação aos surtos de doenças infecciosas. Embora o mundo tenha falhado em se preparar para a Co­vid-19 em diversos pontos, ainda nos beneficiamos de medidas tomadas em resposta a pandemias do passado. Por exemplo: a epidemia do Ebola deixou claro que precisávamos acelerar o desenvolvimento de novas vacinas. Então, a nossa fundação firmou parcerias com governos e outras fundações para criar a Coalition for Epidemic Preparedness Innovations. A CEPI ajudou a financiar várias medidas contra a Covid-19 — incluindo as vacinas Moderna e Oxford AstraZeneca — e está profundamente envolvida com o trabalho de equidade na vacinação.

A fim de evitar que as dificuldades do ano passado aconteçam de novo, a prontidão na resposta às pan­demias deve ser levada tão a sério quanto as ameaças de guerra. O mundo precisa dobrar os investimentos em pesquisa e desenvolvimento e em organizações como a CEPI, que se mostraram imprescindíveis com a Covid-19. Também precisamos construir recursos que ainda não existem.

Evitar a próxima pandemia exigirá que sejam gastos dezenas de bilhões de dólares por ano — um grande investimento, mas lembrem-se de que a estimativa do custo da pandemia atual para o mundo é de 28 trilhões de dólares. O mundo precisa gastar bilhões para economizar trilhões (e evitar milhões de mortes). Penso que essa seja a melhor apólice de seguros, com o maior custo-benefício, que o mundo pode comprar.

A maior parte desse investimento deve vir dos países ricos. Países com receitas baixas e médias e fundações como a nossa têm um papel a desem­penhar, mas governos de nações ricas precisam assumir a liderança, pois os benefícios para elas são enormes. Se você vive em um país rico, é do seu maior interesse que o governo pense grande na prevenção à próxima pandemia ao redor do globo. A ocorrência da Covid-19 em qualquer lugar é uma ameaça à saúde em todos os lugares; isso também é verdade no que diz respeito à próxima possível pandemia. As ferramentas e sistemas criados para deter os patógenos precisam se espalhar pelo globo, incluindo nos países de receitas baixas e médias.

Para começar, os governos precisam continuar investindo nas ferramentas específicas que estão nos ajudando a superar a pandemia atual — mesmo depois que deixarmos a Covid-19 para trás. Novas descobertas nos darão uma vantagem na próxi­ma vez em que uma nova doença aparecer. Foram meses até que os EUA tivessem testes suficientes. Mas é possível desenvolver técnicas para que os diagnósticos que sejam entregues muito rapidamente. Na próxima pandemia, espero que tenhamos o que eu chamo de megaplataformas de diagnósticos, que poderiam testar até 20% da população mundial por semana. Também espero que tenhamos tratamentos melhores. Em relação à Covid-19, os anticorpos monoclonais são bastante promissores. Se um paciente os recebe a tempo, a letalidade pode ser reduzida em até 80%.

A nossa fundação financiou pesquisas sobre os anticorpos monoclonais como tratamentos possíveis para a gripe e a malária por mais de uma década. Esses anticorpos podem ser usados para tratar inú­meras doenças. O problema é que eles demandam muito tempo para serem desenvolvidos e fabricados. É provável que ainda levemos mais cinco anos para aperfeiçoar a tecnologia antes que possamos produ­zi-los rapidamente em resposta a novos patógenos.

No decorrer dos próximos cinco anos, também es­pero ver enormes avanços em nossa capacidade de desenvolver novas vacinas — em grande parte, graças ao sucesso das vacinas de mRNA contra a Covid-19. Escrevi bastante sobre isso na minha retrospectiva de 2020, mas, em resumo, as mRNA são um novo tipo de vacina que dá instruções ao seu corpo, ensi­nando-o a combater um patógeno. Embora a nossa fundação esteja financiando pesquisas desse novo campo desde 2014, nenhuma vacina de mRNA havia sido aprovada até dezembro de 2020.

Assim como eu acho que veremos grandes avanços em se tratando dos diagnósticos e dos anticorpos monoclonais, prevejo que, entre cinco e dez anos, as vacinas de mRNA terão um desenvolvimento mais rápido e amplo, e serão mais fáceis de armazenar. Isso seria um enorme avanço tanto em relação às pandemias futuras quanto a outros desafios sani­tários globais. As vacinas de mRNA são um campo promissor no que diz respeito a doenças como a AIDS, a tuberculose e a malária. Os progressos em pesqui­sa e desenvolvimento feitos por conta da Covid-19 poderão nos dar as ferramentas de que precisamos para, enfim, vencer essas doenças fatais.

No que diz respeito à prevenção de pandemias, as ferramentas científicas não são suficientes. O mundo também precisa de recursos de campo que monito­rem constantemente a presença de patógenos e que possam ser acionados tão logo isso seja necessário. Ainda há muitos detalhes específicos que precisa­mos acertar, incluindo onde esses recursos seriam alocados e como seriam exatamente estruturados, mas aí vai a minha ideia geral.

Em primeiro lugar, precisamos identificar surtos de doenças tão logo e onde quer que eles ocorram. Isso vai exigir um sistema de alerta global, coisa que hoje não temos em larga escala. A espinha dorsal desse sistema seriam os testes de diagnóstico. Digamos que você seja uma enfermeira em uma clínica da zona rural. Você percebe que há mais pacientes com tosses do que seria esperado nessa época do ano, ou mesmo que estão ocorrendo mais mortes do que o normal. Então, você faz testes procurando pelos patógenos mais comuns. Se nenhum deles testar positivo, a sua amostra é enviada para outro lugar a fim de ser sequenciada e examinada.

Se a sua amostra se revelar um patógeno muito in­feccioso ou inteiramente novo, um grupo de emer­gência de doenças infecciosas entrará em ação. Pense nessa equipe como o corpo de bombeiros de uma pandemia. Assim como os bombeiros, eles são profissionais treinados e prontos para responder de imediato a uma crise em potencial. Enquanto não estiverem lidando com um novo foco, eles manterão suas habilidades afiadas trabalhando com doenças como a malária e a pólio. Estimo que precisamos de cerca de 3 mil socorristas ao redor do mundo.

Para aprender a melhor forma de usar essa equipe de emergência, o mundo precisa promover jogos com germes — simulações que nos levem a praticar, analisar e a aprimorar a maneira como responde­mos aos surtos epidêmicos, assim como os jogos de guerra preparam os militares para as guerras de verdade. A velocidade é importante em uma pan­demia. Quanto mais rápido você age, mais rápido o crescimento exponencial do vírus é interrompido. Lugares que tiveram experiências recentes com focos de doenças respiratórias — como Taiwan com a SARS e a Coreia do Sul com a MERS — respon­deram mais rapidamente à Covid-19 do que outros países porque já sabiam o que fazer. Fazer simula­ções assegurará que todos estaremos prontos para agir com mais rapidez.

Por fim, a coisa que me deixa mais otimista de que estaremos prontos da próxima vez é também a mais simples: o mundo agora compreende o quão seria­mente precisamos encarar as pandemias. Ninguém precisa ser convencido de que uma doença infecciosa pode matar milhões de pessoas ou parar a economia global. A dor do último ano ficará gravada na mente das pessoas por uma geração. Tenho esperança de que teremos um amplo apoio aos esforços que as­segurarão que jamais tenhamos de experimentar esse sofrimento outra vez. Já estamos vendo novas estratégias de prevenção às pandemias surgirem, incluindo a cúpula do G7 em 2021, no Reino Unido, e espero ver mais nos próximos meses e anos.

O mundo não estava pronto para a pandemia da Covid-19. Penso que será diferente da próxima vez.


*Trecho traduzido do artigo “The year global health went local”, originalmente publicado no blog de Bill Gates. www.gatesnotes.com.

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