Os números chamam a atenção: só em 2024 foram registradas 180 mil internações por AVC, enquanto os custos hospitalares relacionados ao infarto já ultrapassam R$ 1,2 bilhão ao ano. Apesar da gravidade do cenário, 73% dos cardiologistas ouvidos afirmam que a população ainda tem baixo conhecimento sobre prevenção.
Amanda Sousa, gerente de healthcare na Ipsos, detalha em entrevista exclusiva à revista Medicina S/A os principais achados do estudo, aponta os maiores desafios para melhorar a prevenção cardiovascular no Brasil e explica como estratégias de comunicação mais assertivas podem salvar vidas.
Medicina S/A: O Calendário da Saúde da Ipsos Healthcare apresenta um panorama sobre as doenças cardiovasculares em alinhamento com o Dia Mundial do Coração. Quais os objetivos da iniciativa?
Amanda Sousa: O principal objetivo do calendário da saúde é fornecer informações a respeito de temáticas fomentadas pelo Ministério da Saúde. No caso de “setembro vermelho”, o objetivo principal é aprimorar a disseminação de informações sobre a campanha do Dia Mundial do Coração e aumentar a conscientização da população sobre as doenças cardiovasculares (DCV). Essa iniciativa é fundamental considerando que as DCVs são responsáveis por 400 mil mortes anuais no Brasil — uma morte a cada 90 segundos.
Medicina S/A: O estudo combina três frentes: análise de dados do DATASUS, pesquisa com cardiologistas e levantamento populacional. Como essa metodologia triangulada contribui para uma visão completa do cenário cardiovascular no Brasil?
Amanda Sousa: Nossa abordagem metodológica combina três perspectivas complementares: dados do DATASUS, que fornece a visão epidemiológica e de custos do sistema público; pesquisa com 48 cardiologistas, que traz a perspectiva clínica e os desafios na prática médica; e levantamento com 1.000 brasileiros, que revela o comportamento e conhecimento da população.
Com isso, temos uma visão 360° do cenário cardiovascular, cruzando dados objetivos com percepções médicas e comportamento populacional, garantindo robustez e profundidade analítica.
Medicina S/A: Os dados mostram que o AVC lidera as internações hospitalares, com 180 mil casos em 2024. Quais implicações esse volume tem para o sistema de saúde?
Amanda Sousa: Os 180 mil casos de AVC em 2024 representam uma pressão assistencial, com crescimento de 3,8% ao ano. As implicações incluem necessidade de estruturação de unidades de AVC e protocolos tempo-dependentes, alta demanda por leitos hospitalares (mediana de 4 dias de internação), necessidade de serviços de reabilitação (71% dos pacientes têm mais de 60 anos) e pressão sobre recursos especializados em neurologia e fisioterapia.

Medicina S/A: Já o infarto agudo do miocárdio foi a condição que mais elevou os custos, alcançando R$ 1,2 bilhão em 2024, com crescimento anual de 11,3%. O que explica esse aumento tão expressivo?
Amanda Sousa: O aumento deve-se à incorporação de tecnologias mais caras (stents de nova geração, procedimentos complexos), ao aumento do custo unitário por internação (de R$ 1.530 em 2009 para R$ 3.710 em 2024), à aceleração pós-pandemia (com efeitos tardios da covid-19 no sistema cardiovascular) e à maior complexidade dos casos atendidos. Sobre o efeito pós-pandemia, observamos uma inflexão positiva nas internações por Insuficiência Cardíaca (IC) após 2020 (+4% a.a.), sugerindo impactos tardios da covid-19.
Medicina S/A: O perfil etário dos pacientes é marcadamente idoso, com 71% acima de 60 anos. De que forma esse dado reforça a necessidade de políticas voltadas para esse público?
Amanda Sousa: O dado reforça que precisamos de programas de rastreamento sistemático de fatores de risco nessa faixa etária, além de políticas de envelhecimento ativo com foco em prevenção cardiovascular, adequação dos serviços para atender múltiplas comorbidades e condições clínicas, e estratégias específicas de adesão medicamentosa para idosos.
Medicina S/A: Em termos geográficos, SP, MG, BA, RJ e PR concentram cerca de 60% dos casos. Como interpretar essa concentração regional?
Amanda Sousa: São dados que refletem a maior densidade populacional nesses estados, mas também uma melhor estrutura diagnóstica (mais notificações), uma possível subnotificação em regiões menos estruturadas e a necessidade de fortalecimento das redes regionais de atenção cardiovascular.
Medicina S/A: O levantamento com cardiologistas indica que 73% consideram baixo o conhecimento da população sobre prevenção cardiovascular. Quais os principais reflexos desse déficit de informação?
Amanda Sousa: Os diagnósticos tardios de condições tratáveis, uma menor adesão a medidas preventivas, a procura tardia por atendimento em eventos agudos e a perpetuação de hábitos de risco (73% citam tabagismo, álcool, obesidade e sedentarismo).

Medicina S/A: O levantamento populacional revela que 17% dos brasileiros têm hipertensão, 18% apresentam colesterol alto e 20% têm obesidade/sobrepeso. O que esses percentuais mostram sobre a saúde da população?
Amanda Sousa: Mostram que o cenário exige atenção acerca dessa temática, pois a hipertensão é o principal fator de risco modificável para AVC e infarto. Por exemplo: colesterol alto é porta de entrada para eventos cardiovasculares; a obesidade/sobrepeso é um fator multiplicador de risco; e o índice de multiplicidade de 6 diagnósticos sugere múltiplas comorbidades e condições.
Medicina S/A: O estudo também aponta que muitos pacientes fazem acompanhamento irregular e enfrentam desafios de adesão ao tratamento, muitas vezes por causa dos custos ou porque o acesso é limitado. Quais os impactos disso e as possíveis soluções?
Amanda Sousa: A falta de regularidade nas consultas impacta diretamente no sucesso efetivo do tratamento. Os dados mostram que 18,4% dos pacientes com IC têm múltiplas reinternações, o que poderia ser prevenido com maior adesão dos pacientes.
Medicina S/A: Entre os principais insights, o estudo sugere educação preventiva com campanhas claras sobre hábitos de risco. Como essa comunicação pode ser estruturada de forma eficaz?
Amanda Sousa: Nossa proposta é usar uma linguagem simples e direta sobre fatores de risco cotidianos, realizar campanhas em canais de TV, redes sociais e unidades de saúde, compartilhar testemunhos reais de pacientes recuperados e fazer parcerias com influenciadores de saúde e bem-estar.
Há também oportunidade para uma ação integrada, isto é, a possibilidade de uma coalizão entre campanhas públicas, iniciativa privada, sociedades médicas e população para massificação de informação, considerando que 5 em cada 10 brasileiros têm algum fator de risco cardiovascular.
Medicina S/A: Outro pilar é alertar para sinais precoces de doenças silenciosas, como hipertensão e colesterol alto. Qual a importância de dar visibilidade a esses sinais?
Amanda Sousa: A importância é disseminar algumas informações como: hipertensão e colesterol são silenciosos, mas detectáveis; check-ups regulares salvam vidas; sintomas sutis como cansaço e falta de ar merecem atenção; e a prevenção é 80% eficaz em evitar mortes prematuras.
Medicina S/A: O estudo também propõe desmistificar o tratamento, mostrando que a adesão reduz complicações. Como essa abordagem pode ajudar na mudança de comportamento dos pacientes?
Amanda Sousa: Reduzindo o receio e aumentando a confiança por meio da informação. Afinal, o objetivo é demonstrar claramente que tratamento regular resulta em menos complicações. O compartilhamento de depoimentos de pacientes bem-sucedidos pode despertar identificação e trazer evidências de que a qualidade de vida melhora com a adesão ao tratamento.
Medicina S/A: Por fim, há o pilar de abordar barreiras de acesso, comunicando opções gratuitas ou de baixo custo disponíveis no SUS e em programas governamentais. Como a Ipsos vê essa estratégia no enfrentamento das doenças cardiovasculares?
Amanda Sousa: Nossa visão é de que o conhecimento sobre os riscos de doenças cardiovasculares e, por conseguinte, uma maior rapidez no tratamento podem salvar vidas. Nesse sentido, é fundamental mapear e divulgar todos os recursos gratuitos disponíveis – caso de programas como Farmácia Popular e parcerias público-privadas, que podem ampliar o acesso da população.
Medicina S/A: Olhando para o futuro, como a medicina preventiva e a medicina personalizada — apoiadas por tecnologia, dados e novas abordagens de cuidado — podem abrir caminhos para reverter o cenário das doenças cardiovasculares no Brasil?
Amanda Sousa: Acredito que a inteligência artificial predizendo riscos individualizados, os wearables para monitoramento contínuo, a farmacogenômica para tratamentos personalizados, a telemedicina ampliando acesso a especialistas, o big data identificando populações de risco precocemente e a rapidez na criação e na divulgação de campanhas preventivas serão o caminho que poderá transformar o cenário do cuidado cardiovascular no país.