Ela teve que largar a faculdade, a família, os amigos, os seus sonhos e projetos no Brasil, para morar em um país novo, com uma língua e cultura diferentes, simplesmente para não morrer.
Eu logo percebi que muitas outras pessoas enfrentam essa mesma realidade e muitas vezes não têm a mesma sorte de encontrar uma solução fora do país. Isso evidencia a desigualdade no acesso à saúde e a necessidade de se investir em políticas públicas que garantam acesso a tratamentos adequados para todos, independentemente de sua condição financeira. Afinal, a saúde é um direito humano fundamental e deve ser assegurada a todas as pessoas, sem exceção. Por isso, há cerca de três anos, eu tenho trabalhado com uma colega de Harvard (Amiel Katz) para avançar no âmbito da garantia de direitos e políticas públicas para pessoas com doenças raras na América Latina.
Descobrimos que a voz dos raros, em especial os de baixa renda, não era ouvida nos debates políticos; e, portanto, iniciamos o nosso projeto escutando as histórias deles.
De história em história, aprendemos muito. Aprendemos, por exemplo, que viver com uma doença rara muitas vezes não é sinônimo de tristeza ou sofrimento, mas, sim, de resiliência, força e gratidão. Uma das histórias que mais nos tocaram foi a de Maria Cecília, uma garota de cinco anos que vive em uma comunidade carente no interior do Rio de Janeiro e tem uma doença não diagnosticada. Apesar de viver com uma enfermidade rara, crônica e sem cura, ela está sempre sorrindo e agradecendo pelas pequenas coisas da vida. Semanalmente, ela precisa passar por vários exames de sangue. Mas, com um grande sorriso no rosto, ela sempre diz: “Olha, mãe! Que incrível, eu tenho suco de uva dentro de mim!” (referindo-se ao seu sangue). No seu aniversário de 5 anos, ao invés de presentes e brinquedos, ela pediu que seus convidados lhe dessem medicamentos — o que a permitiria viver para completar o aniversário de 6.
A história de Maria Cecília é apenas uma entre as dezenas de depoimentos, conversas e entrevistas que realizamos durante o nosso processo de pesquisa. Queríamos ouvir quais eram os seus desafios reais, do dia a dia, e com base nisso montar propostas de políticas públicas que seriam de fato eficazes para auxiliar os mais necessitados. Acreditamos que as políticas públicas precisam ser baseadas em evidências concretas e nas necessidades reais das pessoas, e não apenas em decisões políticas. Isso significa ouvir as vozes dos pacientes, suas famílias e comunidades, e envolvê-los em todos os estágios do processo de tomada de decisão.
Para que as políticas públicas sejam verdadeiramente eficazes, é fundamental que as vozes das pessoas afetadas por essas políticas sejam ouvidas e levadas em consideração. Portanto, ao invés de se perguntarem “o que acreditamos que as pessoas precisam?”, os formuladores de políticas públicas deveriam perguntar diretamente para os membros da comunidade: “do que vocês precisam, e como podemos ajudá-los?”. Essa inversão de perspectiva é crucial para garantir que as políticas públicas sejam adaptadas às necessidades específicas de cada comunidade, em vez de serem impostas de forma genérica e de “cima para baixo”. Ao colocar as comunidades no centro do processo de tomada de decisão, podemos garantir que as políticas públicas sejam realmente eficazes e atendam às necessidades da comunidade.
Após essa etapa das entrevistas, conseguimos entender quais eram as principais falhas nas atuais políticas públicas para doenças raras e o impacto delas em comunidades marginalizadas ao redor da América Latina. Nossa pesquisa teve como foco principal três países do continente: Brasil, Peru e Colômbia.
Os resultados da pesquisa foram publicados no The Lancet (Regional Health – Americas), e agora temos usado essas propostas de políticas públicas para gerar um impacto real na vida das mais de 42 milhões de pessoas que vivem com doenças raras na América Latina. Temos nos reunido com membros do poder legislativo, representantes do Ministério da Saúde e outras autoridades públicas para colocar em prática propostas de políticas públicas que foram desenvolvidas em parceria com as comunidades afetadas.
Eis algumas das propostas.
Ampliação do acesso a diagnóstico precoce
É essencial garantir acesso universal e acessível ao diagnóstico precoce por meio da expansão de programas de triagem neonatal e pré-natal, exames diagnósticos e testes genéticos para diagnósticos de doenças raras no SUS. Leva-se cerca de cinco a sete anos para diagnosticar uma doença rara no Brasil. Durante esse tempo, esses indivíduos passam por tratamentos inócuos e visitas médico-hospitalares ineficazes, que não apenas prejudicam a saúde física e mental dos pacientes, mas também geram despesas significativas para o sistema de saúde. Portanto, a expansão de testes diagnósticos pré-natais e o incentivo à pesquisa de sequenciamento de DNA e mapeamento genético são medidas fundamentais para evitar a “odisseia diagnóstica”.
Criação de Centros de Referência para Doenças Raras
O governo brasileiro deve criar mais centros de referência para doenças raras, que atuem como centros de pesquisa, diagnóstico e tratamento, e que visem fornecer assistência médica integral e holística a pacientes com doenças raras, especialmente aqueles de baixa renda. Esses centros devem ser equipados com equipe médica especializada, que possa fornecer atendimento integral aos pacientes e suas famílias. Além disso, eles podem ser usados para conduzir pesquisas em doenças raras, bem como oferecer treinamento e educação médica. Hoje, no Brasil, existem apenas 17 centros habilitados para diagnóstico de doenças raras, dos quais apenas dois estão localizados na região Nordeste e nenhum no Norte do País. Além da necessidade de ampliação desse número, os centros precisam ser criados em áreas onde há uma carência de serviços médicos especializados, como nas regiões Nordeste e Norte do país.
Criação de um Registro Nacional de Doenças Raras
Atualmente, há uma carência de dados atualizados e confiáveis sobre doenças raras. Portanto, é essencial criar programas nacionais de registro dessas enfermidades tanto para os pacientes diagnosticados quanto para os ainda sem diagnóstico preciso, a fim de identificar o número exato de pacientes com doenças raras em todo o país, seus perfis socioeconômicos e demográficos e obter outras informações relevantes. Esse Registro Nacional de Doenças Raras permitirá uma melhor compreensão da prevalência e da distribuição dessas enfermidades no país, o que poderá ser usado para ajudar na identificação de novos casos e na elaboração de políticas públicas.
Redução do preço de medicamentos órfãos
Hoje, cerca de 90% das doenças raras não têm nenhuma opção terapêutica. Além disso, os medicamentos que existem para essas doenças (chamados medicamentos órfãos) contém, em média, um preço 25 vezes mais caro do que os medicamentos comuns. Visando aumentar o acesso a esses remédios no país, o Brasil poderia fornecer isenções fiscais na importação de medicamentos órfãos, além de investir em pesquisa e desenvolvimento (P&D) dos mesmos em centros públicos de excelência em pesquisa, como a FIOCRUZ, o Butantan e hospitais universitários, ou mediante parcerias público-privadas, o que diminuiria o preço desses medicamentos.
Apoio às mães de baixa renda que têm um filho com uma doença rara
Outro aspecto importante é abordar o impacto desproporcional das doenças raras nas mães de baixa renda que têm um filho com doença rara. É comum que as mães abandonem sua profissão ou fonte de renda para se dedicarem integralmente ao cuidado de seus filhos. Frequentemente, essa mãe (ou guardião legal) dedica-se em tempo integral à criança ou adolescente com a doença rara, cuidando da alimentação, higiene e transporte da criança, sendo, portanto, incapaz de se envolver em trabalho remunerado. Isso faz com que elas enfrentem dificuldades financeiras e emocionais significativas.
Uma maneira de fornecer esse suporte é por meio da criação de um programa de licença-maternidade remunerada para mães que precisam cuidar de seus filhos com doenças raras. Essa medida pode ajudar a garantir que as mães possam se concentrar em cuidar de seus filhos sem ter que se preocupar com a perda de renda.
Conclusão
É inegável que as doenças raras representam um grande desafio para a saúde pública brasileira. A falta de diagnóstico precoce, de acesso a medicamentos e de suporte para os pacientes e suas famílias torna a situação ainda mais difícil. No entanto, com as políticas públicas e leis adequadas, podemos fazer a diferença na vida das pessoas com doenças raras no Brasil.
Por trás das estatísticas e números, há pessoas reais, como a minha amiga com fibrose cística, que lutam todos os dias para sobreviver. Devemos garantir que essas pessoas não sejam esquecidas e que tenham acesso aos cuidados de saúde necessários para viver com dignidade, sonhos e esperança.
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*Daniel Wainstock é pesquisador de Direito à Saúde e Doenças Raras na Universidade de Georgetown e na PUC-Rio.