Como a análise preditiva pode transformar o cuidado ao recém-nascido crítico
No Brasil, avanços em dados clínicos e inteligência artificial começam a abrir caminho para levar a análise preditiva ao cuidado neonatal — apesar dos desafios estruturais das UTIs do SUS
Por Giulia Lima Fellow em neonatologia no Boston Children’s Hospital Harvard Medical School
Em um dos meus plantões como fellow de neonatologia no Brigham and Women’s Hospital, em Boston, nos Estados Unidos, eu cuidava de um recém-nascido extremamente prematuro, nascido com 24 semanas. Ele estava surpreendentemente estável para sua idade gestacional: respirava com suporte ventilatório baixo, sem sinais de infecção ou instabilidade hemodinâmica. Era um daqueles momentos raros em que a unidade parecia respirar junto com o bebê; tudo fluía de maneira tranquila.
Durante a noite, esse cenário mudou. Primeiro, foi algo sutil: pequenas oscilações na saturação, que pareciam ainda dentro do aceitável. Depois, uma taquicardia discreta, facilmente atribuível ao desconforto ou à manipulação. Não havia instabilidade térmica, e a pressão arterial se mantinha estável. E, ainda assim, algo estava errado. Iniciamos antibiótico ao primeiro sinal de descompensação, mas a evolução foi fulminante. Em poucas horas, aquele bebê que havia começado o dia estável estava em choque séptico. A hemocultura, dias depois, confirmaria uma infecção por gram-negativo. Fizemos tudo que estava ao alcance — e, mesmo assim, ele não sobreviveu.
Experiências como essa nos acompanham. E, para mim, foram também um ponto de inflexão. A septicemia neonatal é silenciosa, rápida, frequentemente invisível nos estágios iniciais — justamente quando a janela de intervenção é mais valiosa. O que teria acontecido se tivéssemos percebido os sinais antes? Não sinais clínicos tradicionais, mas sinais fisiológicos que o corpo já estava emitindo — apenas de maneira discreta demais para o olho humano?
Essa pergunta me levou à análise preditiva na medicina neonatal.
HERO trial
Giulia Pasqualini de Lima
Um marco importante nessa área foi o estudo randomizado conhecido como HERO trial, realizado em UTIs neonatais nos Estados Unidos. Ele avaliou um score baseado na variabilidade da frequência cardíaca, monitorado continuamente. Quando os médicos tinham acesso a esse índice em tempo real, a mortalidade de prematuros extremos caiu em torno de 20%. Não foi uma nova droga, um novo ventilador ou um novo protocolo invasivo. Foi informação contínua, granular, analisada de forma inteligente e acionável. O corpo do bebê estava comunicando a infecção muito antes dos sinais clínicos serem detectáveis — nós é que não estávamos escutando.
A medicina preditiva nos permite justamente isso: escutar sussurros fisiológicos antes que eles se transformem em gritos clínicos.
No entanto, implementar esse modelo em larga escala é complexo. A análise preditiva depende de grandes volumes de dados fisiológicos contínuos, algo que exige infraestrutura tecnológica robusta, sistemas capazes de registrar e armazenar sinais em alta frequência, e equipes treinadas para interpretar resultados de maneira integrada ao raciocínio clínico, não como alertas isolados.
Cenário brasileiro
No Brasil, esse desafio é particularmente visível. A maior parte das UTIs neonatais — especialmente na rede pública — já opera sob fortes restrições de recursos humanos e materiais. Ainda assim, há avanços importantes. A Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) e o “Meu SUS Digital” representam tentativas concretas de padronizar registros clínicos e permitir a integração entre unidades. A Fiocruz, através da Plataforma de Ciência de Dados aplicada à Saúde (PCDaS), desenvolve metodologias para estruturar grandes conjuntos de dados do SUS. O InCor-HCFMUSP, com sua base de dados InCor-CDM, já conduz pesquisas de predição em doenças complexas. O Hospital Israelita Albert Einstein e o Sírio-Libanês criaram núcleos dedicados de inteligência artificial aplicada à saúde, com projetos que vão desde vigilância epidemiológica até apoio à decisão clínica em terapia intensiva.
Tudo isso mostra que o ecossistema brasileiro não parte do zero. Mas também mostra algo igualmente importante: tecnologia, por si só, não muda a prática clínica.
A implementação eficaz exige gestores que compreendam a necessidade estratégica, médicos que confiem e participem do desenvolvimento dos modelos, e cientistas de dados capazes de traduzir sinais brutos em conhecimento clínico acionável. Um cientista de dados sem o apoio de quem vive à beira do leito não sabe quais variáveis importam. Um médico sem apoio analítico não consegue transformar complexidade fisiológica em padrão. Um gestor que não entende o valor desse investimento tende a enxergá-lo como custo.
A mudança só acontece quando esses três atores trabalham juntos, de forma contínua e alinhada.
Na minha pesquisa, tenho buscado contribuir para essa conversa. Estudo como variações dinâmicas de sinais vitais podem ajudar a prever quando um recém-nascido prematuro extremo desenvolve um ducto arterioso hemodinamicamente significativo, evitando intervenções desnecessárias e permitindo intervenções precoces quando necessárias. Em outro trabalho, investiguei o timing ideal de cirurgia cardíaca em prematuros com cardiopatia congênita, utilizando modelos de análise preditiva, como árvores de decisão, para identificar pontos de corte clínicos que possam orientar decisões personalizadas.
Esses estudos refletem um movimento maior na medicina contemporânea: a transição da medicina baseada em evidências populacionais para a medicina verdadeiramente individualizada. A evidência continua fundamental, mas a aplicação deixa de ser “média populacional” e passa a ser trajetória específica daquele paciente, naquele momento.
No Brasil, incorporar essas inovações ao SUS será um desafio, mas também uma oportunidade. Investir em integração de dados, capacitação de equipes multiprofissionais e incentivo à pesquisa translacional não é apenas uma agenda tecnológica. É uma agenda de equidade. Quanto mais cedo conseguimos identificar riscos, intervir com precisão e evitar complicações graves, mais vidas salvamos e menos gastos acumulamos com internações prolongadas, sequelas e reinternações.
Se queremos um cuidado neonatal que seja mais seguro, mais preciso e mais humano, precisamos aprender a escutar aquilo que os recém-nascidos já estão nos dizendo em silêncio. A análise preditiva não é uma promessa futurista. É uma ferramenta concreta para que nós, como sistema de saúde, possamos finalmente ouvir.
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Giulia Lima é médica, fellow em neonatologia no Boston Children’s Hospital | Harvard Medical School, com graduação pela UFRJ e residência em pediatria na Universidade da Flórida. Atua na área de análise preditiva aplicada ao cuidado neonatal, investigando como dados fisiológicos contínuos e modelos estatísticos podem antecipar riscos de complicações graves, orientar decisões e individualizar o cuidado de recém-nascidos críticos.
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