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Entrevista

Controle do câncer no século XXI: desafios globais exigem soluções coletivas

José Gomes Temporão, pesquisador titular da Fiocruz e ex-ministro da Saúde, explica por que a prevenção e a promoção da saúde devem ser o “eixo central” do combate ao câncer

Por Tâmara Freire

O câncer emerge como uma das mais prementes ameaças à saúde global no século XXI. A incidência global é alarmante, com um aumento de cerca de 20% na última década, e projeções que indicam 35 milhões de novos casos até 2050 – um salto de 77% em relação a 2022, sugerindo uma subestimação da real escala do problema. Aproximadamente um em cada cinco indivíduos desenvolverá câncer ao longo da vida, e a doença já é uma das principais causas de óbito mundialmente.

A complexidade do controle do câncer abrange aspectos técnicos, assistenciais, científicos, sociais e econômicos. O ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão defende que o enfrentamento ao câncer no Brasil e no mundo deve ir muito além do diagnóstico e do tratamento. Para o pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o “eixo central” de combate à doença deveria ser a prevenção e a promoção de saúde.
Em entrevista, ele destaca que o combate à doença é um desafio também de ordem social e econômica e defende ainda uma reestruturação do Sistema Único de Saúde (SUS).

Medicina S/A: Recentemente, o senhor publicou um artigo sobre os desafios do câncer no século XXI. Pode explicar quais são?

José Gomes Temporão: Acho que o primeiro ponto a ser destacado é a gravidade do problema do câncer como um conjunto de doenças. Não é apenas uma doença, são dezenas de tipos diferentes. Em mais de 600 municípios brasileiros, já é a primeira causa de mortalidade, e a projeção da Organização Mundial da Saúde para as próximas décadas é de que o câncer vai ultrapassar as doenças cardiovasculares e cerebrovasculares como principal causa de morte no mundo. O próprio IARC [Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, na sigla em inglês], que é o órgão da OMS para câncer, projeta 35 milhões de novos casos em 2050, em termos globais. No Brasil, o último número que nós temos do Inca, para o triênio que termina em 2025, é de cerca de 700 mil novos casos por ano.

Quando a gente olha para o Brasil e para os países em desenvolvimento, chama muito a atenção que, embora a incidência de casos não seja expressiva em termos globais, 70% das mortes acontecem hoje nos países de baixa e média rendas. Então, tem uma questão aí de desigualdade, de iniquidade muito evidente, porque esses países de baixa e média rendas não conseguem enfrentar o problema, nem do ponto de vista da prevenção e da promoção [da saúde], nem do ponto de vista do acesso ao tratamento, mesmo com as tecnologias mais tradicionais, como é o caso das quimioterapias, da radioterapia e da cirurgia.

A questão central é que o câncer é um problema multifacetado que transcende muito a medicina. Ele demanda respostas sociais, econômicas e éticas também. Você tem um crescimento acelerado da incidência, da prevalência e da mortalidade que pressiona o sistema de saúde, e o que está colocado para nós é que precisamos de políticas que garantam prevenção, detecção precoce, tratamento, reabilitação e cuidados paliativos. Não é pouco desafio.

Medicina S/A: Então, não se trata apenas de diagnosticar e tratar a doença?

José Gomes Temporão: Eu quero muito enfatizar uma coisa: o senso comum, o tempo todo, nos puxa para o lado do tratamento, mas o tratamento significa que a doença já está instalada. E, na verdade, o eixo central deveria ser a prevenção e a promoção de saúde. Mas, no caso de câncer, para prevenir, você tem que tratar dos fatores de risco, e você tem que pensar em como reduzir a prevalência do tabagismo, o consumo de álcool, como controlar a obesidade, o padrão alimentar, o sedentarismo, a poluição ambiental. São problemas muito complexos, porque a maior parte deles não depende apenas do campo da saúde. Eles exigem políticas transversais e intersetoriais.

Dizem que isso é “muito complicado”, é “muito caro”. Os lobbies não permitem, por exemplo, que a publicidade de ultraprocessados para crianças e adolescentes seja proibida. O lobby não permite que os impostos das bebidas açucaradas sejam mais altos, para que elas fiquem caras. Mas esses fatores ambientais causam 90% dos casos de câncer no mundo. Os fatores genéticos são residuais. Aí, todo mundo fica pensando em como se cura, mas a questão central do câncer não é a cura, é evitar a doença. E, para isso, não tem jeito, você tem que lidar com esses fatores que eu listei.

Medicina S/A: E quando a doença se instala, apesar da prevenção, o diagnóstico precoce ainda é a chave para um bom tratamento?

José Gomes Temporão: O diagnóstico precoce é central, mas, para isso, você tem que ter uma rede organizada. A atenção básica tem que ter capacidade de perceber sintomas iniciais da doença e também fazer aqueles rastreamentos, como o exame periódico para detecção do câncer de colo de útero, a mamografia, o toque retal, o exame de PSA, a colonoscopia.

O Brasil dispõe de uma rede de atenção primária que, hoje, cobre 150 milhões de brasileiros, é a maior rede de atenção primária do mundo, mas com um desempenho muito heterogêneo. Quando você olha em termos de território brasileiro, as diferenças são gritantes, de cobertura e de qualidade, e é cada vez mais difícil você instalar serviços especializados nos municípios das regiões Norte e Nordeste, em comparação com a grande concentração tecnológica para diagnóstico e tratamento das regiões Sul e Sudeste, principalmente.

Já para o tratamento, muitas tecnologias revolucionárias estão sendo trazidas pela biotecnologia, como a imunoterapia, que são moléculas que atacam diretamente determinados alvos dentro das células. Mas esses medicamentos podem chegar a milhões de dólares por paciente, completamente fora de possibilidade de incorporação pelo sistema de saúde dos países em desenvolvimento. E aí entra toda a discussão relacionada à dependência tecnológica, às políticas de desenvolvimento da ciência, à tecnologia, à inovação etc.

Medicina S/A: Ou seja, estamos vivendo um momento excelente em termos do desenvolvimento de tecnologia, mas a maioria delas ainda não pode ser utilizada em larga escala.

Temporão: No Brasil, temos um instrumento muito importante que é a Conitec, a Comissão Nacional de Incorporação e Tecnologias no SUS. A gente se inspirou muito no modelo inglês, porque lá na Inglaterra praticamente 90% da população usam apenas o serviço público de saúde, e nada é incorporado no sistema público sem que esse órgão regulador aprove. A gente fez a Conitec um pouco no espelho disso, então, toda e qualquer tecnologia, para ser incorporada no SUS, tem que ser previamente aprovada pela Conitec, e tem que comprovar que o tratamento é custo-efetivo e que há orçamento disponível para compra.

Medicina S/A: O que o Brasil precisa fazer pra conseguir cumprir a lei de 60 dias, que determina que o tratamento contra o câncer deve ser iniciado em até 60 dias após o diagnóstico?

Temporão: Primeiro, como eu consigo fugir da pulverização que nós temos no sistema de saúde hoje? Nós temos mais de 5 mil municípios no Brasil, e cada um é responsável pela saúde, com o apoio dos estados e do governo federal. E nós temos que romper com esse modelo e caminhar para o modelo de regiões de saúde, que congregam municípios, centenas ou dezenas, dependendo do contexto.

Essas desigualdades territoriais e essas assimetrias entre os estados só serão resolvidas com uma regionalização efetiva, com um certo grau de autonomia para que essa região não fique dependente do governo federal, dos estados ou dos municípios. Para que ela possa contratar equipes, fazer compras. Na discussão que está sendo feita hoje, nós sairíamos de mais de 5 mil sistemas municipais para cerca de 400 regiões de saúde em todo o país.

O outro ponto é: como eu garanto especialistas que lidam com a questão do câncer dentro de uma equipe multiprofissional de maneira equânime no território brasileiro? Eu vou dar um chute aqui que 80% dos cirurgiões oncologistas e oncologistas clínicos do Brasil estão no Sul e Sudeste. Com isso, nas outras regiões, com menos especialistas, o tempo de espera é muito maior.

É importante compreender que a lei dos 60 dias foi aprovada com a melhor das intenções, foi resultado de lutas justas de uma série de movimentos sociais que defendem os direitos dos pacientes, mas é uma lei que serve mais como uma referência política do que como uma garantia real, porque essa garantia real só vai se dar quando a gente resolver esses gargalos da regionalização e da disponibilização de especialistas, de equipes multiprofissionais em todo o território brasileiro.

Medicina S/A: O que poderia melhorar um pouco esse cenário?

Temporão: O rastreamento organizado é fundamental. Hoje, tem quatro tipos de câncer com rastreamento de rotina: colo de útero, retal, mama e próstata. E a unidade básica é onde as pessoas fazem esses exames. Ninguém começa sendo atendido num hospital especializado em câncer. Então, essas unidades têm que seguir os protocolos, e o médico de família tem que trabalhar com um cadastro atualizado das famílias que ele atende, considerando a faixa etária e o risco. Mas essa base também precisa ter um apoio de especialistas para recorrer em caso de dúvida. Agora, com as novas tecnologias, isso é a coisa mais simples que existe. Um médico de família, quando está suspeitando de alguma coisa, mas não dispõe dos instrumentos para decidir, pode fazer uma consulta por telemedicina com um especialista que esteja em qualquer outro lugar.

Medicina S/A: Isso já mostra a contribuição que novas tecnologias podem oferecer.

Temporão: As novas tecnologias de comunicação a distância, como telemedicina e telessaúde, estão ampliando muito o acesso. Mas a consulta física é fundamental para se fechar o diagnóstico, evidentemente. Além disso, com a inteligência artificial, há a possibilidade de você melhorar muito a acurácia de um laudo de diagnóstico. O mundo inteiro já está usando isso, porque todo e qualquer diagnóstico que depende do olho humano tem possibilidade de erro, e já está mais do que validado que a fidedignidade de um laudo aumenta cada vez mais com a ajuda da inteligência artificial. Claro que você vai ter que ter o tempo todo uma revisão humana.

O Eric Topol, que é um grande estudioso das tecnologias médicas, aposta que essas tecnologias vão libertar o médico de um conjunto de tarefas burocráticas, para que ele possa se dedicar mais de perto ao cuidado. Espero que ele esteja certo. A nossa expectativa é o resgate da famosa relação médico-paciente, que é fundamental em qualquer tratamento.

Medicina S/A: Mas a área do câncer também enfrenta o lado ruim dessas novas tecnologias, como a desinformação.

Temporão: Ah, sim. Dez anos atrás, quando começou essa história de “doutor Google”, as pessoas iam ao médico e já levavam dez páginas impressas de pesquisa. Agora é mais grave porque, com a inteligência artificial, o paciente vai ao ChatGPT e já vem ao consultório com tudo pronto. A gente também tem outra novidade, que são as redes sociais. Então, a gente precisa construir uma estratégia de comunicação, não só para fazer frente à desinformação, mas também para oferecer mensagens consistentes e culturalmente adequadas. Uma coisa é você conversar com a população que mora na periferia dos grandes centros urbanos, outra coisa é tentar um diálogo com alguém que mora no interior do Nordeste ou na região Amazônica.

Outro ponto importante é a necessidade de se ter muita transparência nos dados. Vamos olhar o exemplo do tabaco, que no Brasil é o maior sucesso mundial. No Brasil, há algumas décadas, o percentual de adultos que fumavam regularmente era mais de 30% da população, e hoje ele está em torno de 10%. Mas a gente proibiu a propaganda em todos os meios. Teve um grande movimento de educação que começou nas escolas, os profissionais de saúde se envolveram. Hoje, você caminha pelas grandes cidades brasileiras e vê que a grande maioria da população não fuma. E como você alcança esse resultado? Tendo dados confiáveis disponibilizados para a sociedade com muita clareza e transparência.

Adaptando para hoje, como eu explico para as pessoas que o que elas comem no dia a dia pode levá-las a desenvolver um determinado tipo de neoplasia daqui a algumas décadas? Que, quando circulamos por uma grande capital, como o Rio ou São Paulo, a poluição do ambiente, causada na maioria das vezes pelas emissões dos veículos automotores, pode causar câncer de pulmão e outras doenças? É a construção de uma comunicação de risco adequada. Também é fundamental você ter uma regulamentação da publicidade, como a gente proibiu a propaganda de tabaco. Agora, precisamos regular a publicidade do álcool e dos ultraprocessados.

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Faça o download do artigo “O Controle do Câncer no Século XXI: Desafios Globais Exigem Soluções Coletivas”.  Conteúdo originalmente publicado na Agência Brasil, pela repórter Tâmara Freire. Fotos de Antônio Cruz.

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