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Entrevista

Excelência em Terapia Intensiva: Brasil avança na qualificação

Patrícia Mello, presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira, analisa a evolução da terapia intensiva no país, os impactos da certificação da qualidade nas unidades e o papel estratégico dos intensivistas

O reconhecimento de UTIs brasileiras como unidades de excelência tem colocado o país em posição de destaque na medicina intensiva mundial. Na edição 2025 da certificação concedida pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) e pela Epimed Solutions, 304 hospitais foram reconhecidos por adotar práticas seguras, eficientes e orientadas por resultados.

São Paulo lidera o ranking nacional com 81 hospitais certificados, seguido por outras capitais do Sudeste — região responsável por mais da metade das UTIs de alto desempenho do país.

Mesmo com os desafios de estrutura e financiamento, o setor público também avança: o número de UTIs públicas certificadas cresceu 45% em um ano, reforçando o esforço contínuo de gestores e profissionais do SUS para elevar a qualidade da assistência crítica no Brasil.

Patrícia Mello, presidente da AMIB, detalha em entrevista exclusiva à revista Medicina S/A os marcos mais recentes da medicina intensiva no Brasil, os critérios da certificação e os desafios que ainda precisam ser superados para tornar o cuidado intensivo mais acessível, seguro e eficaz para todos os brasileiros.

Medicina S/A: Como você avalia o cenário atual das Unidades de Terapia Intensiva?

Patrícia Mello: A medicina intensiva e as primeiras UTIs no mundo surgiram com os avanços tecnológicos ocorridos entre as décadas de 1940 e 1960, permitindo a sobrevivência de pacientes graves com condições clínicas antes invariavelmente fatais. No Brasil, as primeiras UTIs também surgiram nos anos 1960, mas o reconhecimento oficial da especialidade só ocorreu de forma definitiva em 2002. Esse atraso comprometeu a formação de especialistas integralmente dedicados à especialidade e, por consequência, a profissionalização nessas unidades. Nesse período, a especialidade foi largamente praticada por outros especialistas. Além disso, os avanços na área ficaram concentrados em algumas regiões por muitos anos, o que resultou no acesso desigual a uma medicina intensiva de excelência para muitos brasileiros.

Recentemente, com a pandemia de covid-19, ficou claro o papel e a importância dos intensivistas. O mundo compreendeu que um leito de UTI não é apenas uma cama rodeada por equipamentos e que bons resultados só são alcançados através do trabalho de uma equipe multidisciplinar adequadamente dimensionada e capacitada, e que representa o verdadeiro tesouro de toda UTI. Com isso, passamos a observar um interesse crescente na busca pela especialidade e também maiores investimentos direcionados a essas unidades.

Estamos novamente vivenciando grandes avanços do conhecimento médico, novas tecnologias e a chegada da inteligência artificial em nosso dia a dia. Dessa forma, acreditamos estar prestes a presenciar o surgimento de uma nova geração de sobreviventes de doenças hoje ainda não curáveis. Novas transformações estão por vir e os intensivistas e a medicina intensiva certamente estarão no centro desses avanços.

Medicina S/A: Como o Brasil está posicionado em número de leitos e distribuição?

Patrícia Mello: O Brasil ocupa a terceira posição mundial em número absoluto de leitos de UTI, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Um levantamento minucioso feito no ano passado pela AMIB apontou que, dos 73.160 leitos, 51,7% (37.820) eram operados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Os demais 48,3% (35.340) pertenciam ao Sistema Suplementar de Saúde. Para ter uma visão mais próxima da realidade, entretanto, é preciso olhar com mais profundidade os números. À primeira vista, a distribuição percentual de leitos pode parecer muito próxima, mas não é.

O SUS é responsável por prestar atendimento a cerca de 152 milhões de pessoas, o que representa 24,87 leitos por 100 mil habitantes. Já a rede privada tem sob seu escopo 51 milhões de beneficiários, significando 69,28 leitos para cada 100 mil. Ao apontar a lupa para a distribuição de leitos por região geográfica, também ficam evidentes algumas disparidades. Nesse sentido, o levantamento da AMIB mostrou que, enquanto o Norte apresenta 27,52 leitos totais de UTI por 100 mil habitantes, o Sudeste registra 42,58 leitos por 100 mil.

Ao analisar os dados, podemos concluir que o problema não está no número de leitos, mas na distribuição desigual, tanto na comparação entre rede pública e rede privada quanto na territorial. Tornar o acesso mais equânime à medicina intensiva é, com certeza, um grande desafio. Por outro lado, a solução envolve políticas públicas consistentes, visando uma distribuição mais justa da infraestrutura hospitalar e de profissionais intensivistas pelo país.

Medicina S/A: O que falta para que o Brasil avance em larga escala na qualificação da terapia intensiva?

Patrícia Mello: A inserção do ensino da medicina intensiva precisa ser fortalecida nas diretrizes curriculares da graduação médica. Na sequência, é essencial monitorar a qualidade dos programas de residência médica para que a formação do intensivista possa ocorrer com excelência e ele possa exercer sua função com segurança nessas unidades.

Além disso, é importante compreender que, para o exercício da função de plantonista, não é necessário que o profissional seja intensivista. Idealmente, ele deve ter concluído alguma residência médica ou ter alguns anos de experiência clínica. Portanto, é essencial contemplar um projeto de educação continuada para os profissionais não intensivistas que atuam nessas unidades.

Para avançar na qualificação da terapia intensiva é necessário compreender as diferenças regionais, que são imensas, e pensar em soluções direcionadas de forma individualizada para esta realidade. A consistência de investimentos tanto na estruturação de UTIs quanto na capacitação técnica é essencial para ampliar o acesso à saúde. E, quando falamos de medicina intensiva, precisamos incluir investimentos públicos em formação e fixação de intensivistas em áreas remotas e também políticas públicas eficientes para solucionar a má distribuição crônica de leitos.

Além disso, é necessário trabalhar para que haja a implementação e o respeito aos marcos regulatórios já existentes, ou seja, cumprir requisitos mínimos para garantia de qualidade e segurança dessa assistência. Outro aspecto importante é a gestão eficiente dos recursos na UTI. É importante ter consciência de que a solução não é simplesmente aumentar o número de leitos, pois 10 leitos com condução especializada e gestão de excelência resgatam mais vidas do que 30 leitos sem equipe preparada ou processos estruturados.

Por fim, a medicina intensiva precisa ainda de incentivo à pesquisa científica, que, apesar de todas as dificuldades, tem alcançado respeito internacional.

Medicina S/A: A certificação neste ano mostrou avanços no setor público. Quais são os principais desafios enfrentados pelas UTIs públicas em relação às unidades privadas?

Patrícia Mello: O monitoramento da AMIB, através do Projeto UTIs Brasileiras, mostrou um aumento de 45% de unidades certificadas na rede pública, o que demonstra uma preocupação com o setor. Porém, quando falamos em saúde pública, precisamos pensar no paciente antes de chegar na UTI. Em diversas regiões do Brasil, as pessoas enfrentam dificuldades ao acessar o sistema público de saúde, inclusive a atenção básica, e enfrentam ainda mais dificuldades para acessar serviços de média e alta complexidade. Então, não raro, essas barreiras fazem com que muitos pacientes cheguem às UTIs em condições mais graves e demandem tratamentos mais complexos e de alto risco.

Dados do projeto UTIs Brasileiras indicam que a mortalidade nas UTIs públicas é de 27%, enquanto nas UTIs privadas é de 11%. Apesar disso, as UTIs públicas que adotaram indicadores de performance e boas práticas de gestão, conseguiram melhorar significativamente seus resultados. Essas experiências comprovam que, além da estrutura necessária (profissionais qualificados e equipamentos), a organização e o uso de dados confiáveis contribuem enormemente para o bom desempenho das UTIs.

Medicina S/A: Há escassez de intensivistas no país?

Patrícia Mello: Não existe assistência segura e com qualidade sem a presença do intensivista. A pandemia deixou isso muito claro em todo o mundo. A mortalidade por covid-19 tinha índices completamente diferentes em leitos conduzidos por equipes especializadas e em leitos sem esses profissionais. O cuidado do paciente grave não aceita improviso! A equipe multidisciplinar precisa ser especializada e bem dimensionada para que se obtenha bons desfechos. Não são as máquinas que salvam vidas, e sim as pessoas.

Além disso, todas as normativas legais do país reforçam essa necessidade. A RDC07/2010 da ANVISA, por exemplo, coloca como condição mínima de funcionamento de uma UTI a presença de um intensivista titulado com RT (Responsável Técnico) nos turnos da manhã e da tarde em toda UTI. A resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) 2271/2020) corrobora essa exigência.

É importante deixar claro que o cenário de escassez de intensivistas não existe mais em nosso país. Entre 2011 e 2023, a quantidade de médicos especialistas em medicina intensiva cresceu 228%, e agora já temos mais de 10 mil intensivistas titulados distribuídos em todas as regiões do país, em contraste com os 2.464 em 2011. Esse número é suficiente para os cargos de liderança das UTIs existentes hoje no Brasil.

A distribuição desses profissionais acompanha a distribuição dos leitos atualmente existentes. No entanto, ainda precisamos aumentar a interiorização dos leitos de UTI. Ao fazer isso, também será necessária uma estratégia de interiorização desses profissionais mediante ações contínuas de valorização do médico intensivista, expansão de programas de residência médica aliada a políticas de incentivo à fixação de profissionais em regiões com escassez de especialistas, educação continuada e capacitação para profissionais não especialistas que atuam em UTIs.

Medicina S/A: Como a certificação da AMIB tem impactado diretamente na qualidade do atendimento nas UTIs brasileiras ao longo dos anos?

Patrícia Mello: A certificação da AMIB é um selo de qualidade, uma vez que analisa padrões rigorosos de segurança, eficiência e gestão. Participar do processo de certificação exige que a UTI avaliada monitore de forma confiável dados importantes durante todo o ano da análise. Assim, o processo de certificação em si contribui muitas vezes para transformar a cultura institucional, pois a adoção desse monitoramento contribui para a melhora da qualidade do atendimento nas UTIs.  

No processo, são avaliados dois parâmetros principais: a Taxa de Mortalidade Padronizada (TMP), que compara o número de mortes esperadas com o número de mortes reais, levando em conta a gravidade dos pacientes; e a Taxa de Utilização de Recursos Padronizada (TURP), que avalia se a UTI faz um uso adequado dos recursos disponíveis. Esses dois indicadores são calculados a partir de parâmetros internacionais, como o SAPS 3, que estima o risco de morte logo na admissão do paciente na UTI.

Medicina S/A: Quais são as estratégias mais eficazes adotadas pelas UTIs certificadas para garantir um cuidado seguro e sustentável para os pacientes críticos?

Patrícia Mello: As UTIs certificadas pela AMIB se destacam por adotar, de maneira especial, os dois parâmetros citados acima: Taxa de Mortalidade Padronizada (TMP) e Taxa de Utilização de Recursos Padronizada (TURP). No dia a dia, esses indicadores assinalam a adesão de protocolos clínicos baseados em evidência, a gestão multidisciplinar eficiente, o monitoramento constante de indicadores de desempenho, a capacitação e a atualização contínua das equipes, sempre com foco na segurança do paciente.

Medicina S/A: Quais são os resultados mais significativos observados nas UTIs que passaram pelo processo de certificação da AMIB em comparação com as não certificadas?

Patrícia Mello: As UTIs certificadas apresentam menor taxa de mortalidade, redução de eventos adversos, menor tempo de resposta clínica, maior adesão a protocolos de segurança e eficiência no uso de recursos. O processo de certificação, além de identificar e reconhecer essas unidades, representa o reforço positivo essencial para o enfrentamento dos desafios diários, priorizando sempre a qualidade.

Medicina S/A: Qual é a visão da AMIB para o futuro das UTIs no Brasil nos próximos anos?

Patrícia Mello: A história da Medicina Intensiva no Brasil é de expansão, guiada pela qualidade. Acreditamos que os esforços atuais contribuem para um acesso à saúde intensiva mais equânime, reduzindo as desigualdades de distribuição de leitos entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e a saúde suplementar e também regional.

Sobretudo em vista do que vivenciamos durante a pandemia de covid-19, esperamos que os investimentos sejam contínuos na estruturação de UTIs em todas as regiões brasileiras, bem como na formação de novos médicos intensivistas. Os números têm mostrado avanços significativos nesse sentido.

A AMIB continuará trabalhando em conjunto com a saúde pública e com a saúde suplementar para que as UTIs do Brasil sejam cada vez mais eficientes, seguras e com profissionais altamente qualificados. O objetivo é que a assistência intensiva chegue a todos, sem distinção.

Para obtermos resultados positivos no enfrentamento de catástrofes e pandemias, é essencial planejar a estruturação necessária em tempos de calmaria. O momento de dar atenção às necessidades do setor de saúde responsável pelo paciente grave é agora! Investir na qualidade dessas unidades e valorizar o trabalho incansável desses profissionais são pontos essenciais e inadiáveis.

Para mais informações, acesse:
www.amib.org.br/utis-certificacao

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